domingo, 31 de agosto de 2008

Sociologia da Educação - Texto 3


BERGER, Peter L. Perspectivas Sociológicas: uma visão humanística. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1986, pp. 78-136.

A Perspectiva Sociológica — A Sociedade no Homem

No capítulo anterior talvez tenhamos dado ao leitor excelentes motivos para crer que a sociologia deva assumir o título de "ciência sinistra", atribuído à Eco­nomia. Depois de descrevermos a sociedade como uma prisão lúgubre, devemos agora mostrar ao leitor pelo menos alguns túneis pelos quais possa escapar desse sombrio determinismo. Antes disso, contudo, temos de acrescentar mais algum negrume ao quadro.
Até aqui, abordando a sociedade sobretudo segundo o aspecto de seus sistemas de controles, temos encara­do o indivíduo e a sociedade como duas entidades an­tagônicas. A sociedade foi vista como uma realidade ex­terna que pressiona e coage o indivíduo. Se essa imagem não for modificada, obteremos uma impressão bastante errônea da relação, ou seja, uma impressão de massas humanas constantemente forçando seus grilhões, cedendo às autoridades coatoras de dentes rilhados, sendo levadas sempre à obediência pelo medo do que poderá ocorrer se agirem de outra forma. Tanto o conhecimento ordi­nário da sociedade como a análise sociológica propria­mente dita nos mostram que não é este o caso. Para a maioria de nós, o jugo da sociedade parece suave. Por quê? Certamente não porque o poder da sociedade seja menor do que indicamos no último capítulo. Nesse caso, por que esse poder não nos causa maior sofri­mento? Já se fez referência à resposta sociológica à pergunta – porque quase sempre desejamos exatamente aquilo que a sociedade espera de nós. Queremos obedecer às regras. Queremos os papéis que a sociedade nos atribuiu. E isto, por sua vez, é possível não porque o poder da sociedade seja menor, e sim porque é muito maior do que até agora afirmamos. A sociedade deter­mina não só o que fazemos, como também o que somos. Em outras palavras, a localização social não afeta ape­nas nossa conduta; ela afeta também nosso ser. Para esclarecer esse elemento essencial da perspectiva socio­lógica, examinaremos mais três áreas de investigação e interpretação, as da teoria do papel, a sociologia do conhecimento e a teoria do grupo de referência.
A teoria do papel foi uma criação intelectual quase inteiramente americana. Alguns de seus germes remon­tam a William James, mas seus pais diretos são outros dois pensadores americanos, Charles Cooley e George Herbert Mead. Não podemos pretender fazer aqui uma introdução histórica a esse fascinante setor da história intelectual. Ao invés de tentar sequer esboçar essa his­tória, procederemos mais sistematicamente, começando a examinar a teoria do papel com outra olhada ao conceito de Thomas, a definição da situação.
O leitor se recordará que Thomas via a situação so­cial como uma realidade estabelecida por acordo ad hoc entre aqueles que dela participam, ou, mais exatamente, entre aqueles que a definem. Do ponto de vista do par­ticipante individual, isto significa que cada situação lhe apresenta expectativas específicas e exige dele respostas específicas a essas expectativas. Como já vimos, em quase todas as situações sociais existem pressões poderosas para garantir que as respostas sejam as adequadas. A sociedade existe porque as definições da maioria das pessoas para as situações mais importantes são mais ou menos as mesmas. Os motivos do editor e do autor dessas linhas podem ser um tanto diferentes, mas as maneiras como ambos definem a situação em que este livro está sendo produzido são suficientemente similares para que a produção seja possível. Da mesma forma, numa sala de aula podem estar presentes interesses os mais díspares, alguns dos quais terão pouca relação com a atividade educacional que supostamente ali se desenro­la; entretanto, na maioria dos casos estes interesses (digamos que um estudante deseja estudar a matéria lecionada, ao passo que outro simplesmente se

matricula em todos os cursos freqüentados por uma certa loura) podem coexistir numa situação sem a destruir. Em outras palavras, há uma certa margem no grau em que a res­posta tem de satisfazer a expectativa para que uma si­tuação permaneça sociologicamente viável. E' claro que será inevitável alguma forma de conflito ou desorgani­zação social se as definições das situações forem exces­sivamente discrepantes — digamos, se alguns estudantes interpretarem o encontro na sala de aula como uma festa ou se um autor não tiver intenção de produzir um livro, apenas utilizando seu contrato com um editor para pres­sionar outro.
Embora um indivíduo médio encontre expectativas muito diferentes em diversas áreas de sua vida, as situa­ções que produzem essas expectativas enquadram-se em certos grupos. Um estudante pode fazer dois cursos di­ferentes, com dois professores, em dois departamentos uni­versitários, com consideráveis variações nas expectativas encontradas nas duas situações (digamos, formalidade ou informalidade nas relações entre professor e alunos). Não obstante, as situações serão suficientemente seme­lhantes entre si e a outras situações escolares anteriores para possibilitar ao estudante dar em ambas situações essencialmente a mesma resposta geral. Para usarmos outras palavras, em ambos os casos, com apenas algumas modificações, ele será capaz de desempenhar o papel de estudante. Um papel, portanto, pode ser definido como uma resposta tipificada a uma expectativa tipificada. A sociedade pré-definiu a tipologia fundamental. Usando a linguagem do teatro, do qual se derivou o conceito de papel, podemos dizer que a sociedade proporciona o script para todos os personagens. Por conseguinte, tudo quanto os atores têm a fazer é assumir os papéis que foram distribuídos antes de levantar o pano. Desde desempenhem seus papéis como estabelecido no script o drama social pode ir adiante como planejado. O papel oferece o padrão segundo o qual o indivíduo deve agir na situação. Tanto na sociedade quanto no teatro, variará a exatidão com que os papéis fornecem instruções ao ator. Tomando como exemplo os papéis ocupacionais, o papel do lixeiro envolve um padrão mí­nimo, ao passo que os médicos, clérigos e oficiais do exército têm de adquirir toda espécie de maneirismos ca­racterísticos, hábitos de linguagem e gestos, tais como otimismo diante do doente, palavreado santarrão ou garbo militar. Contudo, seria erro grave considerar o papel apenas como um padrão regulador para ações externamente visíveis. Uma pessoa sente-se mais apaixo­nada ao beijar, mais humilde ao se ajoelhar e mais indignada ao sacudir o punho. Isto é, o beijo não só expressa paixão, como também a fabrica. Os papéis trazem em seu bojo tanto as ações como as emoções e atitudes a elas relacionadas. O professor que representa uma cena de sabedoria vem a se sentir sábio. O pre­gador passa a crer no que prega. O soldado descobre pruridos marciais em seu peito ao vestir a farda. Em cada um desses casos, embora a emoção ou atitude já existissem antes de se assumir o papel, este, inevitavel­mente, reforça aquilo que já existia. Em muitos casos há Bons motivos para se acreditar que absolutamente nada antecedia, na consciência do ator, o desempenho do papel. Em outras palavras, uma pessoa se torna sábia ao ser nomeado professor, crente ao se entregar a atividades que pressupõem crença e pronto para batalha ao marchar em ordem unida.
Vejamos um exemplo. Um homem recentemente pro­movido a oficial, principalmente se subiu na hierarquia a partir da graduação mais baixa, a principio se sentirá Pelo menos levemente embaraçado com as continências que agora recebe dos praças que encontra. É provável que lhes responda de maneira amistosa, quase como se pedisse desculpas. Os novos distintivos em sua farda ainda são coisas que ele simplesmente colocou ali, quase como um disfarce. Na verdade, o novo oficial poderá até dizer a si mesmo e a outras pessoas que no fundo ele ainda é a mesma pessoa, que simplesmente adquiriu novas responsabilidades (entre as quais, en passant, o dever de aceitar as continências dos subalternos). Não é provável que essa atitude dure muito. A fim de de­sempenhar seu novo papel de oficial, nosso homem tem de manter uma certa atitude — a qual tem implicações bastante definidas. Apesar da conversa mole a esse res­peito, habitual nos chamados exércitos democráticos,

como o americano, uma das implicações fundamentais é a de que um oficial é um superior, com direito a obe­diência e respeito, com base nessa superioridade. Toda continência prestada por um inferior hierárquico é um ato de obediência, recebido como coisa natural pelo ho­mem que a retribui. Assim, a cada continência prestada e aceita (juntamente, é claro, com uma centena de outros atos cerimoniais que realçam sua nova posição), fortifica-se a convicção de nosso oficial — e suas, por assim dizer, premissas ontológicas. Ele não só age como oficial, como sente-se oficial. Terminaram o embaraço, a atitude de desculpas, o meio-sorriso tranqüilizador. Se em alguma ocasião um praça lhe prestar continência sem a dose adequada de entusiasmo ou mesmo cometer o ato impensável de não lhe prestar continência, o ofi­cial não determinará apenas uma punição por violação do regulamento militar. Será levado com todas as fibras de seu ser a exigir reparação de uma ofensa contra a ordem normal de seu universo.
E' importante acentuar nesse exemplo que só muito raramente esse processo é deliberado ou baseado em re­flexão. O oficial não se sentou e imaginou todas as coisas que deveriam acompanhar seu novo papel, inclusive as coisas que deveria sentir. A força do processo está jus­tamente em seu caráter inconsciente, reflexo. Ele se trans­formou em oficial quase tão naturalmente como um me­nino se torna um rapagão de olhos azuis, cabelos cas­tanhos e l,80m de altura. Também não seria corretosupor que esse homem deva ser um tanto estúpido ou exceção entre seus camaradas. Pelo contrário, o excepcional é o homem que reflete sobre seus papéis (um tipo, aliás, que provavelmente seria mau oficial). Até mesmo pessoas muito inteligentes, quando em dúvi­da quanto a seus papéis na sociedade, se envolverão ainda mais na atividade que gera a dúvida, ao invés de se porem a refletir. O teólogo que duvida de sua fé rezará mais e frequentará a Igreja com mais assidui­dade o homem de negócios tomado de escrúpulos devido à pressão que exerce sobre os empregados começa a ir ao escritório também aos domingos, e o terrorista que sofre de pesadelos apresenta-se como voluntário para execuções noturnas. E é claro que essas atitudes são per­feitamente correias. Todo papel tem sua disciplina interior, aquilo que os monásticos católicos chamariam de sua "formação". O papel dá forma e constrói tanto a ação quanto o ator. E' dificílimo fingir neste mundo. Nor­malmente, uma pessoa incorpora o papel que desempenha. Todo papel na sociedade acarreta uma certa identida­de. Como vimos, algumas dessas identidades são triviais e transitórias, como em algumas ocupações que exigem pouca modificação no ser de seus praticantes. Não é difícil passar de lixeiro a vigia noturno. E' bem mais difícil passar de clérigo a oficial. E' muitíssimo difícil passar de negro para branco. E é quase impossível passar de homem para mulher. Essas diferenças na facilidade ou dificuldade com que se muda de papel não deve obscurecer o fato de que até mesmo as identidades que julgamos constituir a essência de nossas personalidades foram atribuídas socialmente. Da mesma forma como se adquire papéis raciais e com eles se identifica, há tam­bém papéis sexuais. Dizer "Sou homem" constitui uma proclamação de papel, tanto quanto dizer. "Sou coronel do Exército dos Estados Unidos". Estamos bem cientes fato de que uma pessoa nasce com o sexo masculino, ao passo que nem mesmo o militar mais rigoroso e des­provido de humor imagina que haja nascido com uma «guia dourada pousada em seu umbigo. Entretanto, o fato de se nascer macho, do ponto de vista biológico tem muito pouco que ver com o papel específico, defi­nido socialmente (e, naturalmente, socialmente relativo), que motiva a declaração "Sou homem". Uma criança do sexo masculino não tem de aprender a experimentar urna ereção. Mas tem de aprender a ser agressivo, a ter ambi­ções, a competir com outras pessoas, a desconfiar de uma atitude demasiado gentil de sua parte. O papel masculino em nossa sociedade, entretanto, exige todas essas coisas que se tem de aprender, como exige também uma identidade masculina. Ser capaz de ereção não basta — se bastasse, regimentos inteiros de psicoterapeutas estariam sem trabalho.

O significado da teoria do papel poderia ser sinteti­zado dizendo-se que, numa perspectiva sociológica, a identidade é atribuída socialmente, sustentada socialmen­te e transformada socialmente. O exemplo do homem em processo de se tornar oficial talvez baste para ilus­trar a maneira como as identidades são atribuídas na vida adulta. Contudo, mesmo papéis que são muito mais fundamentais, para aquilo que os psicólogos chamariam de personalidade, do que aqueles ligados a uma deter­minada atividade adulta são atribuídos, de maneira muito semelhante, por um processo social. Isto já foi demonstrado abundantemente em estudos de "socializa­ção" — o processo pelo qual uma criança aprende a ser um membro participante da sociedade.
E' provável que o trabalho teórico mais penetrante sobre este processo seja o de Mead, no qual a gênese do eu é identificada com a descoberta da sociedade. A criança descobre quem ela é ao aprender o que é a sociedade. Aprende a desempenhar os papéis que lhe são adequados, ao aprender, como diz Mead, "a assu­mir o papel do outro" — o que, aliás, é a função sócio-psicológica crucial da brincadeira, na qual as crianças representam vários papéis sociais e ao assim fazer descobrem o significado dos papéis que lhes são atribuídos. Todo esse aprendizado ocorre, e só pode ocor­rer, em interação com outros seres humanos, quer se tratem dos pais ou de qualquer outra pessoa que eduque a criança. A criança primeiro assume papéis ligados àquelas pessoas que Mead chama de seus "outros significativos”, isto é, aquelas que lidam com ela mais de perto . cujas atitudes são decisivas para a concepção que a criança faz de si mesma. Mais tarde, a criança aprende que os papéis que representa são relevantes não só para seu círculo íntimo, como também se relacionam com as expectativas da sociedade em geral. Esse nível mais alto de abstração na resposta social é denominado por Mead de descoberta do "outro generalizado". Ou seja, não é só a mãe que espera que a criança seja boazinha, limpa e que diga a verdade; a sociedade espera a mesma coisa. Só quando surge essa concepção geral da socie­dade é que a criança se torna capaz de formar uma con­cepção clara de si própria. Na experiência infantil, "eu" e "sociedade" são o verso e o reverso da mesma medalha.
Em outras palavras, identidade não é uma coisa pré-­existente; é atribuída em atos de reconhecimento social. Somos aquilo que os outros crêem que sejamos. A mesma idéia é expressa na conhecida descrição de Cooley do eu como o reflexo de um espelho. Isto não significa, é claro, que não existam certas características com as quais um indivíduo nasce, que fazem parte de sua he­rança genética, a qual se manifesta em qualquer meio social. Nosso conhecimento da biologia humana ainda não nos possibilita uma imagem muito clara da extensão em que isto será verdade. Sabemos, contudo, que a margem para a formação social dentro desses limites genéticos é bastante grande. Mesmo sem dispormos de respostas cabais para as questões biológicas, podemos dizer que ser humano é ser considerado humano, da mesma forma que ser um certo tipo de homem significa ser considerado como tal. A criança privada de afeto e atenção humanas torna-se desumanizada. A criança a quem é concedido respeito vem a respeitar-se. Um menino tido como bobo torna-se bobo, da mesma forma um adulto tratado com o temor devido a um deus da guerra começa a se considerar como tal e a agir como compete a tal figura — e, na verdade, funde sua identidade com a que corresponde a essas expectativas
As identidades são atribuídas pela sociedade. E' pre­ciso ainda que a sociedade as sustente, e com bastante regularidade. Uma pessoa não pode ser humana sozinha e, aparentemente, não pode apegar-se a qualquer iden­tidade sem o amparo da sociedade. A auto-imagem do oficial como oficial só pode ser mantida num contexto social no qual outras pessoas estejam dispostas a reconhecê-lo nessa identidade. Se esse reconhecimento for subitamente retirado, geralmente não tardará muito para que a auto-imagem seja abalada.
Os casos de retirada radical de reconhecimento por parte da sociedade nos ensinam

muita coisa a respeito do caráter social da identidade. Por exemplo, um homem que da noite para o dia passa de cidadão livre a con­denado vê-se submetido imediatamente a um ataque ma­ciço contra a concepção que faz de si mesmo. Pode tentar desesperadamente apegar-se a essa concepção, mas na falta de outras pessoas que confirmem sua velha identidade ser-lhe-á quase impossível mantê-Ia. Com assustadora rapidez, ele descobrirá que está agindo como se espera que um condenado aja e sentindo todas as coisas que se espera que um condenado sinta. Seria errôneo encarar o processo como uma simples desinte­gração de personalidade. Mais correto seria considerar o fenômeno como uma reintegração de personalidade, em nada diferente, em sua dinâmica sócio-psicológica, do processo pela qual a antiga identidade foi integrada. O fato é que nosso homem era tratado por pessoas im­portantes que o rodeavam como um homem responsável, digno, obsequioso e de gosto apurado. Conseqüentemente, ele podia ser tudo isso. Agora, as paredes da prisão o separam das pessoas cujo reconhecimento possibilita­va a demonstração dessas qualidades. Cercam-no agora pessoas que o tratam como um irresponsável, vigarista, egocêntrico e desleixado, que exige supervisão constante. As novas expectativas tipificam-se no papel de conde­nado, que constitui resposta a elas, da mesma forma quanto as velhas expectativas integravam-se num diferente padrão de conduta. Em ambos os casos, a identidade vem com a conduta, e esta ocorre em resposta a uma situação social específica.
Os casos extremos em que um indivíduo é despojado de maneira radical de sua antiga identidade simplesmente ilustram com mais vigor processos que ocorrem a« vida cotidiana. Nossas vidas se desenrolam dentro de uma complexa trama de reconhecimentos e não-reconhecimentos. Trabalhamos melhor quando estimula­dos por nossos superiores. E' difícil não sermos desa­jeitados numa reunião onde sabemos que as pessoas nos consideram ineptos. Tornamo-nos espirituosos quando as pessoas esperam que sejamos engraçados, e tipos inte­ressantes quando sabemos que temos tal reputação. Inte­ligência, humor, habilidade manual, devoção religiosa e até potência sexual respondem com igual vivacidade às expectativas alheias. Isto torna compreensível o proces­so, já mencionado, segundo o qual os indivíduos pre­ferem ligar-se a pessoas que sustentem suas auto-interpretações. Em termos sucintos, todo ato de ligação social resulta numa escolha de identidade. Inversamente, toda identidade exige ligações sociais específicas para sua sobrevivência. Os pássaros da mesma plumagem vivem juntos não por luxo, mas por necessidade. O in­telectual torna-se "bitolado" depois de ser seqüestrado pelo exército. O seminarista perde cada vez mais o senso de humor ao se aproximar a época da ordenação. O operário que ultrapassa todas as quotas de trabalho verifica que passa a ultrapassá-las ainda mais depois de receber medalha da administração. O jovem ansioso com relação à sua virilidade torna-se um leão na cama depois de encontrar uma moça que o considera um avatar de Don Juan.
Para relacionarmos essas observações com o que ficou no capítulo anterior, o indivíduo se localiza na sociedade dentro de sistemas de controle social, e cada um desses sistemas contém um dispositivo de geração de identidade. Na medida que for capaz, o indivíduo tentará manipular suas ligações (e sobretudo as íntimas) de maneira a fortalecer as identidades que lhe proporcio­naram satisfação do passado — casando-se com uma moça que o julgue inteligente, escolhendo amigos que o considerem simpático, escolhendo uma ocupação que o mostre como uma pessoa de futuro. Em muitos casos, naturalmente, essa manipulação não é possível. Nesse caso, tem-se de fazer o melhor possível com as iden­tidades de que se dispõe.
Essa perspectiva sociológica do caráter da identidade nos proporciona uma compreensão mais profunda do significado humano do preconceito. Surge, então, uma percepção deprimente: o pré-julgamento afeta não só o destino externo da vítima nas mãos de seus opresso­res, mas também sua própria consciência, na medida em que ela é moldada pelas expectativas da sociedade. A coisa mais terrível que o preconceito pode fazer a um ser humano é fazer com

que ele tenda a se tornar aquilo que a imagem preconceituosa diz que ele é. O judeu num meio anti-semita tem de lutar com afinco para não se tornar cada vez mais parecido ao estereó­tipo anti-semita, da mesma forma que o negro numa si­tuação racista. Sintomaticamente, essa luta só terá pos­sibilidade de êxito se o indivíduo for protegido de su­cumbir (ao programa traçado pelo preconceito para sua personalidade) por aquilo a que chamaríamos de contra-reconhecimento, por parte de membros de sua comuni­dade imediata. O mundo gentio poderia ver um homem como apenas mais um judeu desprezível sem importância, e tratá-lo como tal, mas esse não-reconhecimento de seu valor pode ser neutralizado pelo contra-reconhecimento dentro da própria comunidade judaica como, digamos, o maior especialista no Talmude na Letônia.
Em vista da dinâmica sócio-psicológica desse mortí­fero jogo de reconhecimentos, não surpreende que o pro­blema da "identidade judaica" só tenha surgido entre os modernos judeus ocidentais depois que a assimilação na sociedade judaica começou a debilitar o poder da própria comunidade judaica para atribuir identidades alternativas a seus membros, em oposição às identidades a eles atribuídas pelo anti-semitismo. Quando um indivíduo é obrigado a se ver refletido num espelho construído e modo a refletir uma imagem deformada, ele tem de procurar freneticamente outros homens com outros espelhos, pois de outra forma chegará a esquecer que um dia já teve outro rosto. Para usarmos palavras um pouco diferentes, a dignidade humana é uma questão de permissão social.
O mesmo relacionamento entre sociedade e identidade pode ser visto nos casos em que, por um motivo ou outro, a identidade de um indivíduo é mudada drastica­mente. A transformação da identidade, tanto quanto sua gênese e sua manutenção, constitui um processo social. Já mostramos como qualquer reinterpretação do passado, qualquer "alternação" de uma auto-imagem para outra, exige a presença de um grupo que conspire para pro­vocar a metamorfose. Aquilo que os antropólogos chamam de rito de passagem envolve o repúdio de uma antiga identidade (digamos, ser criança) e a iniciação numa nova identidade (como a de adulto). As sociedades mo­dernas possuem ritos de passagem mais brandos, como a instituição do noivado, pela qual o indivíduo é gentil­mente levado, por uma conspiração de todos os envol­vidos, a transpor a linha divisória entre a liberdade do celibato e o cativeiro do casamento. Não fosse essa instituição, um número muito maior de pessoas seria tomado de pânico ao último momento, diante a enormidade do passo que estão prestes a dar.
Já vimos também como a "alternação" transforma identiades em situações altamente estruturadas como a educação religiosa e a psicanálise. Tomando novamente esta última como exemplo oportuno, ele envolve uma tensa situação social em que o indivíduo é levado a repudiar sua antiga concepção de si mesmo e assumir uma nova identidade, a qual foi programada para ele na ideologia psicanalista. Aquilo que os psicanalistas chama de “transferência”, a intensa relação entre analista e analisando, consiste essencialmente na criação de um meio social artificial dentro do qual possa ocorrer a alqui­mia da transformação, ou seja, dentro do qual essa alquimia possa tornar-se plausível ao indivíduo. Quanto mais durar a relação e quanto mais intensa se tornar, mais o indivíduo se liga à sua nova identidade. Finalmente ao ser "curado", essa nova identidade já se tornou real­mente aquilo que ele é. Portanto, não há por que negar com uma gargalhada marxista, a afirmação do psicana­lista de que seu tratamento será mais eficiente se o pa­ciente o visitar com freqüência, durante muito tempo, e lhe pagar honorários consideráveis. Conquanto seja óbvio que isto coincide com o interesse econômico do analista, é bem plausível sociologicamente que a atitude esteja factualmente correta. O que a psicanálise faz é na ver­dade a construção de uma nova identidade. A ligação do indivíduo a essa nova identidade aumentará eviden­temente na proporção direta do tempo, da intensidade e do investimento financeiro que ele aplicou em sua construção. E' claro que sua capacidade de rejeitar toda a história como uma impostura se tornará mínima depois de ele haver investido vários anos de sua vida e uma quantia astronômica de dinheiro.
O mesmo tipo de meio "alquímico" é criado em si­tuações de "terapia de grupo". A recente popularidade deste método na psiquiatria americana não pode também ser interpretada simplesmente em bases econômicas. Ela tem sua base sociológica no princípio perfeitamente correto de que as pressões de grupo atuam efetivamente para fazer o indivíduo aceitar a nova imagem que lhe é proporcionada. Erving Goffman, sociólogo contempo­râneo, fez uma descrição vívida da maneira como essas pressões atuam no contexto de um hospital de doenças mentais, com os pacientes finalmente "cedendo" à inter­pretação psiquiátrica de sua existência que constitui o quadro de referência comum do grupo "terapêutico".
O mesmo processo tem lugar sempre que todo um grupo de indivíduos tem de ser "quebrado" e levado a aceitar uma nova definição de si mesmos. Acontece no treinamento básico dos recrutas de um exército, e com muito mais intensidade no treinamento de pessoal para carreira permanente nas forças armadas, como nas militares. Acontece nos programas de doutrinação e formação de funcionários para organizações totalitárias como as SS nazistas ou a elite do Partido Comunista. Recentemente, adquiriu precisão científica nas técnicas de "lavagem cerebral" empregadas em prisioneiros das polícias secretas totalitárias. A violência desses métodos em relação às iniciações mais rotineiras da sociedade, deve ser explicada sociologicamente em termos do grau radical de transformação de identidade que é procurado e da necessidade funcional, nesses casos, de que a aquisição da nova identidade esteja à prova de novas "alternações".
Quando levada às suas conclusões lógicas, a teoria do papel faz muito mais que simplesmente nos proporcionar uma taquigrafia conveniente para a descrição de várias atividades sociais. Ela nos oferece uma antropologia so­ciológica, isto é, uma visão do homem baseada em sua existência na sociedade. Essa visão nos mostra que o ho­mem representa papéis dramáticos no grande drama da sociedade e que, falando-se sociologicamente, ele é as máscaras que tem de usar para representar. Além disso, a pessoa aparece agora num contexto dramático, fiel à sua etimologia (persona, o termo técnico com que se designa as máscaras dos atores no teatro clássico). A pessoa é percebida como um repertório de papéis, cada um dos quais adequadamente equipado com uma determinada identidade. O âmbito da pessoa individual pode ser medido pelo número de papéis que é capaz de desempenhar. A biografia da pessoa se nos afigura agora como uma seqüência ininterrupta de desempenhos num palco, para diferentes platéias, às vezes exigindo mudanças totais de roupagens, sempre exigindo que o ator seja o personagem.
Tal visão sociológica desafia muito mais radicalmente que a maioria as teorias psicológicas a maneira como habitualmente nos vemos. Desafia radicalmente um dos mais caros pressupostos acerca do "eu" — sua continuidade. Visto sociologicamente, o "eu" deixa de ser uma entidade objetiva, sólida, que se transfere de uma situação para outra. Será um processo, criado e recriado continuamente em cada situação social de que uma pessoa participa, mantido coeso pelo tênue fio da memória Em nossa análise da reinterpretação do passado vimos quão tênue é esse fio. Tampouco é possível, dentro dessa es­trutura interpretativa, buscar no inconsciente o conteúdo "real" da personalidade, uma vez que, como já vimos, o presuntivo ego inconsciente está tão sujeito à produção social quanto o chamado ego consciente. Em outras pala­vras, o homem não é também um ser social; é social em todos os aspectos de seu ser aberto à investigação em­pírica. Portanto, ainda falando-se sociologicamente, se alguém perguntar quem é "realmente" um indivíduo nesse caleidoscópio de papéis e identidades, só se pode responder através da enumeração das situações em que ele é uma coisa e das situações em que é outra.
Ora, é claro que tais transformações não podem ocorrer ad infinitum e que algumas são mais fáceis que outras. Um indivíduo se habitua a tal ponto com certas identi­dades que, mesmo quando sua situação social muda, ele encontra dificuldade para acompanhar as novas expecta­tivas. Isto é demonstrado com toda clareza pelas dificul­dades enfrentadas por indivíduos saudáveis e ativos quando obrigados a se aposentar. A capacidade de trans­formação da personalidade depende não só de seu con­texto social, como também do grau de seu hábito a iden­tidades anteriores e talvez também de certos traços ge­néticos. Conquanto essas modificações em nosso modelo se façam necessárias a fim de evitar uma radicalização de nossa posição, elas não reduzem apreciavelmente a descontinuidade da personalidade, revelada pela análise sociológica.
Se este modelo antropológico não muito edificante lembra outro seria o empregado na psicologia do bu­dismo primitivo na índia, na qual a personalidade era comparada a uma longa fileira de velas, cada uma das quais acende o pavio da seguinte e se extingue. Os psicólogos budistas usavam essa imagem para desacreditar a idéia hindu da transmigração da alma, pretendendo dizer com o símile que não existe nenhuma entidade que passe de uma vela para outra. Entretanto, a mesma se ajusta muito bem a nosso modelo antropológico.
Tudo isto poderia deixar a impressão de que na verdade não existe diferença essencial entre a pessoa comum e aquelas acometidas pelo distúrbio que a psiquiatria chama de "personalidade múltipla". Desde que se acentuasse o adjetivo "essencial", talvez o sociólogo concor­dasse com isto. A diferença prática, contudo, é que para as pessoas "normais" (isto é, aquelas assim considera­das pela sociedade) há fortes pressões no sentido de mostrarem coerência nos vários papéis que desempe­nham e nas identidades que os acompanham. Tais pres­sões são externas e internas. Externamente, os outros atores com quem se praticam os jogos sociais, e de cujo reconhecimento dependem os papéis da própria pes­soa, exigem que esta apresente ao mundo uma imagem razoavelmente coerente. Um certo grau de discrepância de papéis poderá ser permitido, mas se certos limites de tolerância forem ultrapassados a sociedade retirará seu reconhecimento ao indivíduo em questão, definindo-o como uma aberração moral ou psicológica. Assim, a sociedade permitirá que um indivíduo seja um déspota no escritório e um serve no lar, mas não lhe permitirá personificar um oficial de polícia e usar as roupas designadas para o sexo oposto. A fim de permanecer dentro dos limites fixados para suas pantomimas, o indivíduo talvez tenha de recorrer a manobras complicadas para garantir uma segregação de papéis. O papel imperial no escritório será ameaçado pelo aparecimento da esposa numa reunião da diretoria, ou o papel de uma pessoa num círculo onde é tida como exímia narradora é ameaçado pela intrusão de um membro do outro círculo onde narrador é tipificado como um sujeito que nunca abre a boca sem meter os pés pelas mãos. Essa segregação de papéis torna-se cada vez mais possível em civilização urbana contemporânea, com sua anonimidade e seus rápidos meios de transporte, embora persista o perigo de que pessoas com imagens contraditórias de si mesmas subitamente tropecem uma na outra e façam periclitar suas mútuas representações. Esposa e secretária poderiam encontrar-se para tomar um café e em sua conversa pulverizar as imagens do imperador no escritório e do servo no lar. Nesse ponto, sem dúvida será necessário um psicoterapeuta para juntar os cacos do indivíduo.
Há também pressões internas no sentido de coerência, talvez baseadas em profundíssimas necessidades psico­lógicas do indivíduo de se ver como uma totalidade. Até mesmo o ator urbano contemporâneo, que representa papéis mutuamente irreconciliáveis em diferentes áreas de sua vida poderá talvez sentir tensões internas, embora possa controlar as externas mediante a cuidadosa separa­ção de suas diversas mises en scène. Para evitar tais an­siedades, as pessoas geralmente segregam sua consciência, bem como sua conduta. Não queremos dizer com isto que elas "reprimam" suas identidades discrepantes para algum "inconsciente", pois dentro de nosso modelo temos todos os motivos para suspeitar de tais conceitos. Quere­mos dizer que elas focalizam sua atenção apenas naquela identidade particular de que, por assim dizer, necessitam no momento. As outras identidades são esquecidas en­quanto durar essa cena específica. Este processo poderá talvez ser ilustrado pela maneira como atos sexuais desaprovados pela sociedade ou atos moralmente ques­tionáveis de qualquer espécie são segregados na cons­ciência. O homem que pratica, por exemplo, masoquismo homossexual possui uma identidade cuidadosamente cons­truída e guardada apenas para essas ocasiões. Quando a ocasião termina, ele devolve a identidade na portaria, por assim dizer, e volta para casa como pai afetuoso, marido responsável e talvez até amante impetuoso de sua mulher. Da mesma forma, o juiz que sentencia um réu à pena de morte segrega a identidade com a qual assim age do resto de sua consciência, na qual é um ser humano bondoso, tolerante e sensível. O comandante do campo de concentração nazista que escreve cartas sentimentais aos filhos não passa de um exemplo extre­mo de algo que ocorre continuamente na sociedade.
O leitor erraria redondamente se julgasse que lhe es­tamos apresentando uma imagem da sociedade na qual todos tramam, conspiram e deliberadamente vestem dis­farces para enganar-se mutuamente. Pelo contrário, a representação de papéis e os processos formadores de identidade são geralmente irrefletidos e não planejados, quase automáticos. As necessidades psicológicas de coe­rência da auto-imagem a que nos referimos garantem isto. A fraude deliberada exige um grau de autocontrole psicológico de que poucas pessoas são capazes. E' por isso que a insinceridade é fenômeno relativamente raro. A maioria das pessoas é sincera, porque este é o caminho mais fácil, psicologicamente. Isto é, elas acreditam no que representam, esquecem convenientemente a representação anterior e seguem pela vida contentes, convictas de esta­rem à altura de todas as expectativas. A sinceridade é a consciência do homem que se empolga com sua pró­pria representação. Ou, como se expressou David Riesman, o homem sincero é aquele que acredita em sua própria propaganda. Em vista da dinâmica sócio-psicológica que acabamos de analisar, é muito provável que os assassi­nos nazistas sejam sinceros ao se descrever como burocra­tas encarregados de certas tarefas desagradáveis, que realmente abominavam, sendo talvez incorreto supor que eles só digam isso para ganhar a simpatia de seus juizes. Seu remorso humanitário será provavelmente tão sincero quanto sua passada crueldade. Como observou o roman­cista austríaco Robert Musil, no coração de todo assas­sino há um ponto em que ele é eternamente inocente. As estações da vida se sucedem, e uma pessoa tem de mudar de rosto como muda de roupa. No momento não estamos interessados nos problemas psicológicos ou no significado ético dessa "falta de caráter". Só queremos frisar que este é o procedimento habitual.
Para relacionarmos o que acabamos de dizer sobre a teoria dos papéis com o que ficou dito no capítulo precedente a respeito dos sistemas de controle, reportamo-nos àquilo que Hans Gerth e C. Wright Mills chamaram de "seleção de pessoas". Toda estrutura social seleciona as pessoas de que necessita para seu funcionamento e elimina aquelas que de uma maneira ou de outra não servem. Se não houver pessoas a serem selecionadas, elas terão de ser inventadas — ou melhor, serão produzidas de acordo com as especificações necessárias. Dessa forma, através de seus mecanismos de socialização e "formação", a sociedade manufatura o pessoal de que necessita para funcionar. O sociólogo vira de cabeça para baixo a idéia comum de que certas instituições surgem porque existem pessoas em disponibilidade. Pelo contrário, guerreiros ferozes surgem porque há exércitos a serem enviados a batalhas, homens piedosos porque há igrejas a construir, eruditos porque há universidades onde lecionar e assassi­nos porque há crimes a cometer. Não é correto dizer que cada sociedade tem os homens que merece. Antes, cada sociedade produz os homens de que necessita. Podemos tirar algum consolo do fato de que este processo de produção às vezes enfrenta dificuldades técnicas. Vere­mos mais tarde que, além disso, ele pode ser sabotado. No momento, contudo, podemos constatar que a teoria dos papéis e suas percepções concomitantes acrescentam uma importante

dimensão à nossa perspectiva socioló­gica da existência humana.
Se a teoria dos papéis nos proporciona idéias vívidas sobre a presença da sociedade no homem, idéias seme­lhantes podem ser obtidas de uma outra direção muito diferente — a chamada sociologia do conhecimento. Ao contrário da teoria dos papéis, a sociologia do conhe­cimento tem origem europeia. O termo foi usado pela primeira vez na década de 20 pelo filósofo alemão Max Scheler. Outro pensador europeu, Karl Mannheim, que passou os últimos anos de sua vida na Inglaterra, foi um dos que despertaram a atenção do pensamento anglo-saxônico para a nova disciplina. Não cabe no escopo deste livro esmiuçar as interessantes origens intelectuais da sociologia do conhecimento, que remontam a Marx, Nietzsche e ao historicismo alemão. A sociologia do conhecimento entra em nosso raciocínio para demonstrar que, tanto quanto os homens, as idéias têm localização social. Na verdade, isto pode servir como definição da disciplina para nossos propósitos: a sociologia do conhe­cimento trata da localização social das idéias.
Com mais clareza que qualquer outro ramo da sociolo­gia, a sociologia do conhecimento elucida o que se quer dizer ao afirmar que o sociólogo é o homem que pergunta a todo instante: "Quem disse?" Ela rejeita a idéia de que o pensamento ocorra isolado do contexto social dentro do qual determinados homens pensam sobre determina­das coisas. Mesmo no caso de idéias muito abstratas que aparentemente têm pouquíssima conexão social, a sociologia do conhecimento tenta traçar a linha que une o pensamento, seu autor e o mundo social deste. Isto pode ser visto com toda facilidade nos casos em que o pensamento serve para legitimizar uma determinada situação social, ou seja, quando ele a explica, justifica e santifica.
Suponhamos um exemplo simples. Digamos que numa sociedade primitiva algum alimento necessário só possa ser obtido viajando-se por mares traiçoeiros, infestados de tubarões. Duas vezes por ano, os homens da tribo partem para buscá-lo em suas precárias canoas. Supo­nhamos que as convicções religiosas dessa sociedade in­cluam um artigo de fé segundo o qual todo homem que deixar de participar dessa expedição perderá sua viri­lidade, exceto os sacerdotes, cuja virilidade é mantida por seus sacrifícios diários aos deuses. Essa convicção cria uma motivação para aqueles que se arriscam na viagem perigosa e proporciona simultaneamente uma le­gitimação para os sacerdotes, que ficam sempre no bem-bom. E' desnecessário acrescentar que é bem provável que foram os sacerdotes quem inventaram a teoria. Em outras palavras, suspeitaremos que estamos diante de uma ideologia sacerdotal. Entretanto, isto não significa que ela não seja funcional para a sociedade como um todo — afinal de contas, alguém tem de ir, pois de outra forma sobrevirá a fome.
Falamos que existe uma ideologia quando uma certa idéia atende a um interesse da sociedade. Com muita freqüência, embora nem sempre, as ideologias destorcem sistematicamente a realidade social com o intuito de so­bressair onde isto lhes interessa. Ao examinar os sis­temas de controle estabelecidos por grupos ocupacionais já vimos a maneira como as ideologias podem legitimar as atividades de tais grupos. O pensamento ideológico, todavia, é capaz de abranger coletividades humanas muito maiores. Por exemplo, a mitologia racial do Sul dos Estados Unidos serve para legitimar um sistema social praticado por milhões de seres humanos. A ideologia da "livre empresa" serve para camuflar as atividades monopolísticas de grandes companhias americanas, cuja úni­ca característica que têm em comum com o capitalista ao velho estilo é a disposição constante de fraudar o público. A ideologia marxista, por sua vez, serve para legitimar a tirania praticada pela máquina do Partido Comunista, cujos interesses estão para o de Karl Marx assim como os de Elmer Gentry estavam para os do Apóstolo Paulo. Em cada um desses casos, a ideologia tanto justifica o que é feito pelo grupo cujo interesse é atendido, como interpreta a realidade social de maneira a tornar a justificação plausível. Essa interpretação muitas vezes parece extravagante a quem está de fora e "não entende o problema" (isto é, que não tem interesses a defender). O racista americano é capaz de afirmar ao mesmo tempo que as mulheres brancas têm profunda repugnância ao mero pensamento de relações sexuais com um negro, e que a mais leve sociabilidade inter-racial levará diretamente a tais relações sexuais. E o gerente de uma indústria insistirá em que suas atividades ten­dentes a manipular preços são realizadas em defesa do mercado livre. E o funcionário do Partido Comunista arranjará uma explicação para provar que a limitação de escolha eleitoral a candidatos aprovados pelo partido constitui expressão de verdadeira democracia.
Convém ressaltar mais uma vez que geralmente as pes­soas que manifestam essas opiniões estão sendo abso­lutamente sinceras. O esforço moral necessário para mentir deliberadamente está além da maioria das pessoas. E' muito mais fácil iludir a si próprio. Por conseguinte, é importante distinguir o conceito de ideologia dos concei­tos de mentira, fraude, propaganda ou prestidigitação. O mentiroso, por definição, sabe que está mentindo. O ideólogo, não. Não nos interessa neste ponto perguntar qual dos dois é eticamente superior. Desejamos apenas acentuar ainda uma vez a maneira irrefletida e não pla­nejada como a sociedade normalmente funciona. A maio­ria das teorias de conspiração exageram grosseiramente a previdência intelectual dos conspiradores.
As ideologias também podem funcionar "latentemente", para usarmos a expressão de Merton em outro contexto. Voltemos mais uma vez ao Sul dos Estados Unidos como exemplo. Uma das coisas que ele tem de interessante é a coincidência geográfica entre o Cinturão Negro e o Cinturão da Bíblia. Isto é, aproximadamente a mesma área que pratica o sistema racial sulista em sua plena pureza apresenta também a maior concentração de pro­testantismo ultraconservador, fundamentalista. Pode-se explicar essa coincidência historicamente, mostrando-se o isolamento do protestantismo sulista em relação às correntes mais amplas do pensamento religioso desde os grandes cismas denominacionais, devido à questão escravagista, antes da Guerra da Secessão. Essa coincidên­cia poderia ser também interpretada como expressão de dois aspectos diferentes de barbárie intelectual. Não refu­taríamos nenhuma dessas explicações, mas argumenta­ríamos que uma interpretação sociológica em termos de funcionalidade ideológica daria uma visão melhor do fenômeno.
O fundamentalismo protestante, conquanto obcecado pela idéia de pecado, tem um conceito curiosamente li­mitado de sua extensão. Os pregadores revivalistas que vociferam contra a perversidade do mundo atêm-se inva­riavelmente numa gama um tanto limitada de transgressões morais — fornicação, embriaguez, dança, jogo, pragas. Na verdade, dão tanta ênfase à primeira dessas transgressões que na linguagem comum do moralismo protestante o termo "pecado" é quase sinônimo do termo mais específico "ofensa sexual". Diga-se o que se disser a respeito desse rol de atos perniciosos, todos eles têm em comum seu caráter essencialmente privado. Na ver­dade, se um pregador revivalista chega a mencionar questões públicas, será geralmente em termos da corrup­ção privada dos detentores de cargos públicos. As auto­ridades do governo roubam, o que é mau. Também fornicam, bebem e jogam, o que presumivelmente ainda é pior. Ora, a limitação do conceito de ética cristã a deli­tos pessoais tem funções óbvias numa sociedade cujas organizações sociais fundamentais são dúbias, para se dizer o mínimo, quando confrontadas com certos princí­pios do Novo Testamento e com o credo igualitário da nação que nele acredita ter suas raízes. O conceito pri­vado de moralidade do fundamentalismo protestante con­centra atenção nas áreas de conduta que são irrelevantes para a manutenção do sistema social, e desvia a atenção daquelas áreas onde uma inspeção ética criaria tensões para o perfeito funcionamento do sistema. Em outras palavras, o fundamentalismo protestante é ideologicamen­te funcional para a manutenção do sistema social do sul dos Estados Unidos.

Não é necessário irmos até o ponto em que ele legitima diretamente o sistema, como nos casos em que a segregação racial é proclamada como uma ordem natural ditada por Deus. No entanto, mesmo na ausência de tal legitimação "manifesta", as convic­ções religiosas em questão funcionam "latentemente" para manter o sistema.
Embora a análise das ideologias ilustre claramente o que se entende por localização social das idéias, seu âmbito ainda é muito estreito para demonstrar o pleno significado da sociologia do conhecimento. Esta discipli­na não trata exclusivamente das idéias que servem a determinados interesses ou que deturpam a realidade so­cial. Ao invés disso, a sociologia do conhecimento reivindica jurisdição sobre todo o reino do pensamento, não, é claro, considerando-se como árbitro de validade (o que seria megalomaníaco) mas sim na medida em que qual­quer pensamento está fundado na sociedade. Não quere­mos dizer com isto (como diria um intérprete marxista) que todo pensamento humano deva ser considerado como "reflexo" direto de estruturas sociais, nem tampouco que as idéias devam ser vistas como inteiramente impoten­tes para traçar o rumo dos acontecimentos. O que que­remos dizer é que todas as ideias são examinadas cuida­dosamente para se determinar sua localização na exis­tência social das pessoas que as cogitaram. Nessa me­dida, pelo menos, é correio afirmar que a sociologia do conhecimento seja de tendência antiidealisía.
Toda sociedade pode ser vista em termos de sua es­trutura social e de seus mecanismos sócio-psicológicos, e também em termos da cosmovisão que atua como o uni­verso comum habitado por seus membros. As cosmo-visões variam socialmente, de uma sociedade para outra e dentro de diferentes setores da mesma sociedade. E' nesse sentido que se diz que um chinês "vive num mundo diferente" do mundo de um ocidental. Para ficarmos com este exemplo por um instante, Mareei Granet, sinólogo francês fortemente influenciado pela sociologia durkheimiana, analisou o pensamento chinês exatamente sob essa perspectiva de investigar seu "mundo diferente". A di­ferença, naturalmente, é patente em questões como fi­losofia política, religião ou ética. Entretanto, segundo Granet, diferenças fundamentais podiam também ser en­contradas em categorias como tempo, espaço e número. Afirmativas muito semelhantes têm sido feitas em análises de outras espécies, como as que comparam os "mundos" da antiga Grécia e do antigo Israel, ou o "mundo" do hinduismo tradicional com o do moderno Ocidente.
A sociologia da religião constitui uma das áreas mais fecundas para esse tipo de investigação, em parte talvez porque nela o paradoxo da localização social aparece de forma particularmente incisiva. Parece de todo im­próprio que idéias concernentes aos deuses, ao cosmos dos homens, presos a todas as relatividades humanas de geografia e história. Isto tem constituído uma das pedras de tropeço emocionais da erudição bíblica, sobretudo quando esta tenta descobrir o que chama de Sitz im Leben (literalmente, "sítio na vida" — quase a mesma coisa a que demos o nome de localização social) de fenômenos religiosos particulares. Uma coisa é discutir as afirmações eternas da fé cristã, e outra muito dife­rente é investigar como essas afirmações podem estar relacionadas às frustrações, ambições e ressentimentos, muito temporais, de determinadas camadas sociais nas cidades poliglotas do Império Romano aonde os primei­ros missionários cristãos levaram sua mensagem. Mais que isso, porém, o próprio fenômeno da religião em si pode ser localizado socialmente em termos de funções específicas, tais como legitimação da autoridade política e abrandamento de rebelião social (aquilo que Weber chamou de "teodicéia do sofrimento" — ou seja, a ma­neira como a religião empresta sentido ao sofrimento, de modo a convertê-lo, de fonte de revolução a veículo de redenção). A universalidade da religião, longe de constituir prova de sua validade metafísica, é explicável em termos de tais funções sociais. Ademais, as mudan­ças dos padrões religiosos no decurso da história tam­bém podem ser interpretados em termos sociológicos.
Tomemos como exemplo a distribuição de filiações re­ligiosas no mundo ocidental contemporâneo. Em muitos países ocidentais, a freqüência à igreja pode ser cor­relacionada quase rigorosamente com classes sociais, de modo que, por exemplo, a atividade religiosa constitui uma das marcas de status de classe média, ao passo que a abstenção de tal atividade caracteriza a classe proletária. Em outras palavras, parece haver uma relação entre a fé de uma pessoa, digamos, na Trindade (ou pelo menos demonstrações exteriores dessa fé) e sua renda anual — abaixo de certo nível de renda parece que tal fé perde toda plausibilidade, ao passo que acima desse nível ela se torna coisa natural. A sociologia do conhecimento indagará como surgiu essa espécie de rela­ção entre estatística e salvação. As respostas, inevita­velmente, serão sociológicas — em termos da funciona­lidade da religião nesse ou naquele meio social. O soció­logo não poderá, naturalmente, fazer quaisquer declara­ções sobre questões teológicas em si, mas será capaz de demonstrar que essas questões raramente têm sido transacionadas num vácuo social.
Para voltarmos a um exemplo anterior, o sociólogo não será capaz de dizer às pessoas se lhes convém ligar-se ao fundamentalismo protestante ou a uma versão menos conservadora dessa fé, mas poderá mostrar-lhes como a escolha funcionará socialmente. Tampouco estará em condições de decidir para as pessoas se devem fazer batizar seus filhos ou se devem protelar esse ato, mas poderá informá-las qual a expectativa quanto a isso nesse ou naquele estrato social. Tampouco ele poderá sequer estimar a plausibilidade de uma vida além-túmulo, mas poderá informar em que carreiras profissio­nais será conveniente a urna pessoa pelo menos simular tal convicção.
Além dessas questões da distribuição social de religio­sidade, alguns sociólogos contemporâneos (como, por exemplo, Helmut Schelsky e Thomas Luckmann) têm in­dagado se os tipos de personalidade produzidos pela mo­derna civilização industrial permitem a continuação dos padrões religiosos tradicionais e se, por vários motivos sociológicos e sócio-psicológicos, o mundo ocidental talvez já não esteja num estágio pós-cristão. A análise dessas questões, entretanto, nos afastaria de nossa linha de ra­ciocínio. Os exemplos religiosos deverão ter sido suficien­tes para indicar a maneira como a sociologia do conhe­cimento localiza as idéias na sociedade.
O indivíduo, por conseguinte, adquire socialmente sua cosmovisão quase da mesma forma como adquire seus papéis e sua identidade. Em outras palavras, tanto quanto suas ações, suas emoções e sua auto-interpretação são pré-definidas para ele pela sociedade, da mesma forma que sua atitude cognitiva em relação ao universo que o rodeia. Alfred Schuetz expressou este falo em sua frase "mundo aceito sem discussão" — o sistema de pressupostos (aparentemente óbvios e que se auto-ratificam) com relação ao mundo que cada sociedade engen­dra no curso de sua história. Essa cosmovisão determi­nada socialmente já está, pelo menos em parte, incorpo­rada na linguagem usada pela sociedade. E' possível que certos lingüistas tenham exagerado a importância desse único fator na criação de qualquer cosmovisão específica, mas restam poucas dúvidas de que a lingua­gem de uma pessoa pelo menos ajuda a dar forma à sua atitude para com a realidade. Além disso, obviamente. a linguagem não é escolhida por nós, sendo-nos imposta pelo grupo social incumbido de nossa socialização inicial. A sociedade pré-define para nós esse mecanismo simbó­lico fundamental com o qual apreendemos o mundo, or­denamos nossa experiência e interpretamos nossa pró­pria existência.
Da mesma forma, a sociedade fornece nossos valores, nossa lógica e o acervo de informação (ou desinformação) que constitui nosso "conhecimento". Raríssimas pessoas, e mesmo essas apenas em relação a fragmentos dessa cosmovisão, estão em condições de reavaliar aquilo que lhes foi assim imposto. Na verdade, não sentem nenhuma necessidade de reavaliação porque a cosmovisão em que foram socializados lhes parece óbvia. Uma vez que ela também será considerada assim por quase todos os mem­bros de sua própria sociedade, essa cosmovisão ratifica-se, valida-se. Sua "prova" está na experiência reiterada de outros homens

que também a tomam como coisa natural, assentada. Enunciemos essa perspectiva da so­ciologia do conhecimento numa proposição sucinta: a realidade é construída socialmente. Com essa formulação, a sociologia do conhecimento ajuda a sintetizar a afir­mativa de Thomas sobre o poder da definição social e lança mais luz sobre a imagem sociológica da natureza precária da realidade.
A teoria dos papéis e a sociologia do conhecimento re­presentam elementos muito diferentes do pensamento sociológico. Os importantes subsídios que fornecem a res­peito dos processos sociais ainda não foram integrados teoricamente, exceto talvez no sistema sociológico con­temporâneo de Talcott Parsons, demasiado complexo para ser exposto aqui. Contudo, uma conexão relativamente simples entre as duas abordagens é proporcionada pela chamada teoria do grupo de referência, outra contribui­ção americana. Utilizado pela primeira vez por Herbert Hyman na década de 40, o conceito do grupo de refe­rência foi desenvolvido por vários sociólogos americanos (entre os quais Robert Merton e Tamotsu Shibutani). Tem sido muito útil na pesquisa do funcionamento de organizações de vários tipos, tais como militares e indus­triais, embora essa utilização não nos interesse aqui.
Já se fez distinção entre os grupos de referência de que uma pessoa faz parte e aqueles para os quais ela orienta suas ações. Este último tipo atenderá a nossos objetivos. Um grupo de referência, nesse sentido, é a coletividade cujas opiniões, convicções e rumos de ação são decisivos para a formação de nossas próprias opi­niões, convicções e rumos de ação. O grupo de referên­cia nos proporciona um modelo com o qual nos podemos comparar continuamente. Especificamente, ele nos ofere­ce um determinado ponto de vista sobre a realidade social, que poderá ou não ser ideológico no sentido ante­riormente mencionado, mas que em qualquer caso será parte e parcela de nossa participação nesse grupo particular.
Certa vez a revista The New Yorker publicou um cartum mostrando um jovem universitário bem vestido falando a uma moça desgrenhada que desfila numa ma­nifestação, portando um cartaz exigindo o fim dos testes nucleares. A legenda dizia mais ou menos: "Tenho a impressão de que não a verei hoje à noite no Clube dos Conservadores Jovens". Esta vinheta demonstra a larga gama de grupos de referência hoje disponíveis a um universitário. Qualquer estabelecimento de ensino supe­rior, com exceção dos muitos pequenos, oferece uma ampla variedade de tais grupos. O estudante sequioso de participação poderá unir-se a qualquer número de grupos de definição política, poderá orientar-se para um bando beatnik, ligar-se a um círculo de gente-bem ou simplesmente andar de um lado para outro com o grupinho formado em torno de um professor popular. E' desnecessário dizer que, em cada um desses casos, será preciso cumprir certos requisitos em termos de vestuário e comportamento — entremear a conversa com jargão esquerdista, boicotar a barbearia local, usar paletó e gravata ou andar descalço a partir da primavera. Mas a escolha de grupo trará consigo também um conjunto de símbolos intelectuais, os quais seria conveniente exibir com um ar de fidelidade — ler a National Review ou Dissent (conforme o caso), apreciar a poesia de Allen Ginsberg, lida ao som do jazz mais dissonante possível, conhecer os nomes de batismo dos presidentes de meia dúzia de companhias em que se está de olho ou de­monstrar desdém indizível por alguém que admita não conhecer os Poetas Metafísicos. O republicanismo à Ia Goldwater, o Trotskysmo, o Zen Budismo ou a Nova Critica — todas essas augustas possibilidades de Weltanschauung podem engrandecer ou estragar reuniões nos sábados à noite, envenenar as relações com os co­legas de quarto ou tornar-se base de fortes alianças com pessoas que antes se evitava a todo transe. E então se descobre ser possível "ganhar" certas moças com um carro esporte e outras com John Donne. E' claro que só um sociólogo mal-intencionado poderia julgar que a escolha entre um Jaguar ou a poesia de Donne será determinada em termos de necessidade estratégica.
A .teoria do grupo de referência demonstra que a filia­ção ou a desafiliação normalmente traz consigo com­promissos cognitivos específicos. Uma pessoa se liga a um grupo e por isso "sabe" que o mundo é isso ou aquilo. Outra troca este grupo por outro e passa a "saber" que devia estar enganada. Todo grupo a que urna pessoa se reporta proporciona um ângulo de visão privilegiado do mundo. Todo papel incorpora uma cosmovisão. Ao se escolher pessoas específicas, escolhe-se um lugar específico do mundo para viver. Se a socio­logia do conhecimento nos oferece um panorama da cons­trução social da realidade, a teoria do grupo de refe­rência aponta-nos as muitas pequenas oficinas em que "igrejinhas" de construtores do universo fabricam seus modelos do cosmo. A dinâmica sócio-psicológica que con­diciona este processo será presumivelmente a mesma que já examinamos ao analisar a teoria dos papéis — o impulso humano de ser aceito, de participar, de viver num mundo junto com outras pessoas.
Algumas das experiências realizadas por psicólogos sociais sobre a maneira como a opinião de grupo afeta até mesmo a percepção de objetos físicos dão-nos uma idéia da força irresistível desse impulso. Diante de um objeto de, digamos, 70 cm de comprimento, um indiví­duo progressivamente modificará sua estimativa inicial, correta, se colocado num grupo experimental em que todos os membros afirmem terem certeza de que o com­primento real será 30 cm aproximadamente. Não é de espantar, portanto, que as opiniões grupais no tocante a questões políticas, éticas ou estéticas exerçam força ainda maior, uma vez que o indivíduo assim pressionado não pode recorrer, como último argumento, a um gaba­rito político, ético ou estético. Se o tentasse fazer, o grupo naturalmente negaria o gabarito. A medida de validade de um grupo é o gabarito de ignorância de outro grupo. Os critérios de canonização e amaldiçoamento são intercambiáveis. Quem escolhe seus companheiros, escolhe seus deuses.
Destacamos neste capítulo alguns elementos do pen­samento sociológico que nos proporcionam uma imagem da sociedade atuando no homem, ampliando nossa ante­rior perspectiva do homem atuando na sociedade. Neste ponto, nossa imagem da sociedade como uma enorme prisão já não parece satisfatória, a menos que lhe acres­centemos o detalhe de grupos de prisioneiros ocupados ativamente em manter suas paredes intactas. Nosso en­carceramento na sociedade já nos parece algo criado tanto por nós próprios quanto pela operação de forças externas. Uma imagem mais adequada da realidade so­cial seria agora a de um teatro de fantoches, com a cortina se levantando e revelando as marionetes saltando nas extremidades de seus fios invisíveis, representando animadamente os pequenos papéis que lhe foram atribuí­dos na tragicomédia a ser encenada. Entretanto, a ana­logia não é bastante ampla. O Pierrô do teatro de fan­toches não tem vontade nem consciência. Mas o Pierrô do palco social nada deseja senão o destino que o aguarda no cenário — e possui todo um sistema filo­sófico para prová-lo.
O termo chave usado pelos sociólogos para se referir aos fenômenos discutidos neste capítulo é "internaliza­ção". O que acontece na socialização é que o mundo social é internalizado pela criança. O mesmo processo, embora talvez num grau mais fraco, ocorre a cada vez que o adulto é iniciado num novo contexto social ou num novo grupo social. A sociedade, então, não é apenas uma coisa que existe "lá", no sentido durkheimiano, mas ela também existe "aqui", parte de nosso ser mais ín­timo. Apenas uma compreensão da internalização dá sen­tido ao fato incrível de que a maioria dos controles externos funcionem durante a maior parte do tempo para a maior parte das pessoas de uma sociedade. A socie­dade não só controla nossos movimentos, como ainda dá forma à nossa identidade, nosso pensamento e nossas emoções. As estruturas da sociedade tornam-se as es­truturas de nossa própria consciência. A sociedade não se detém à superfície de nossa pele. Ela nos penetra, tanto quanto nos envolve. Nossa servidão para com a sociedade é estabelecida menos por conquista que por conluio. Às vezes, realmente, somos esmagados e subju­gados. Com freqüência muito maior caímos na arma­dilha engendrada por nossa própria natureza social. As paredes de nosso cárcere já existiam antes de entrarmos em cena, mas nós a reconstruímos eternamente. Somos aprisionados com nossa própria cooperação.
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DE QUE MANEIRA A ESCOLA FORTALECE NO INDIVÍDUO A IMPORTÂNCIA/ INFLUÊNCIA DO OUTRO GENERALIZADO?

Sociologia da Educação - Texto 2


BERGER, Peter L. Perspectivas Sociológicas: uma visão humanística. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1986, pp. 78-136.


A Perspectiva Sociológica — O Homem na Sociedade

Ao chegarem a uma certa idade, as crianças ficam profundamente admiradas com a possibilidade de se localizarem num mapa. Parece estranho que a vida fami­liar de uma pessoa tivesse transcorrido inteiramente numa área delineada por um sistema de coordenadas impessoais (e até então desconhecidas) na superfície de uma mapa. As exclamações da criança — "Estive aqui!", "Agora estou aqui!" — revelam o assombro pelo fato de que o local das férias do verão passado, um local marcado na memória por fatos pessoais como a propriedade do pri­meiro cachorro ou uma coleção secreta de minhocas, tenha latitudes e longitudes específicas, determinadas por estranhos que não conhecem o cachorro, as minhocas ou a própria criança. Essa localização do "eu" em configu­rações concebidas por estranhos constitui um dos aspectos importantes daquilo que, talvez eufemisticamente, é cha­mado de "crescer". Uma pessoa participa do mundo real dos adultos por possuir um endereço. A criança que talvez recentemente poria no correio uma carta endereça­da "A vovô" agora informa a um colega caçador de minhocas seu endereço exato — rua, cidade, estado e o que mais for necessário — e vê sua tentativa de ingres­so na cosmovisão adulta legitimada espetacularmente pela chegada da carta do amigo.
À medida que a criança continua a aceitar a realidade dessa cosmovisão, continua a colecionar endereços — "Tenho seis anos", "Meu nome é Brown, como o de meu pai, é porque meus pais são divorciados", "Sou pres­biteriano", "Sou americano", e, quem sabe, "Estou na classe especial dos meninos inteligentes, porque meu Q.I. é 130". Os horizontes do mundo, da maneira como os adultos o definem, são determinados pelas coordenadas de cartógrafos remotos. A criança pode exibir identifica­ções alternadas ao se apresentar como pai ao brincar de casinha, como um cacique indígena ou como Davy Crockett, mas não deixará de saber em nenhum momento que está apenas brincando e que os fatos reais a seu respeito são aqueles registrados em sua ficha escolar. Abandonamos as aspas e assim denunciamos que também nós fomos induzidos à sanidade em nossa infância — é claro que devíamos escrever todas as palavras chaves entre aspas: "saber", "reais", "fatos". A criança sadia é aquela que acredita no que está registrado em sua ficha escolar. O adulto normal é aquele que vive dentro das coordenadas que lhe foram atribuídas.
Aquilo a que se chama consenso geral é na verdade o mundo dos adultos aceito como óbvio — a ficha es­colar trnasformou-se numa ontologia. Agora a persona­lidade passa a ser identificada, naturalmente, com a ma­neira como a pessoa está localizada com precisão no mapa social. O que isto significa para a identidade e as idéias de uma pessoa será tratado mais extensamente no pró­ximo capítulo. O que nos interessa no momento é a maneira como essa localização informa a um indivíduo aquilo que ele pode fazer e o que pode esperar da vida. Estar localizado na sociedade significa estar no ponto de interseção de forças sociais específicas. Geral-mente quem ignora essas forças age com risco. A pessoa age em sociedade dentro de sistemas cuidadosamente de-finidos de poder e prestígio. E depois que aprende sua localização, passa também a saber que não pode fazer muita coisa para mudar a situação.
A maneira como os indivíduos de classe mais baixa usam o pronome "eles" exprime com bastante exatidão essa consciência da heteronomia da vida de uma pessoa. "Eles" arrumam as coisas dessa ou daquela maneira "eles" dão o tom, "eles" fazem as regras. Talvez não

seja muito fácil identificar esses "eles" com determina­dos indivíduos ou grupos. E' o "sistema", o mapa traçado por estranhos, sobre o qual tem-se de continuar a rastejar. Mas isto seria urna maneira unilateral de se considerar "o sistema", se se pressupõe que este conceito perde seu significado quando uma pessoa passa para as camadas superiores da sociedade. A rigor, haverá uma maior sensação de liberdade de movimento e decisão, o que será verdade. Mas as coordenadas básicas dentro das quais se pode mover e tomar decisões ainda terão sido traçadas por outros, na maioria estranhos, muitos deles mortos, há muito tempo. Até mesmo o autocrata total exerce sua tirania contra uma constante resistência, não necessariamente resistência política, mas a resistência do costume, das convenções e do simples hábito. As insti­tuições trazem consigo um princípio de inércia, talvez alicerçada, em última instância, na rocha firme da estu­pidez humana. O tirano constata que, embora ninguém se atreva a contestá-lo, mesmo assim suas ordens serão freqüentemente anuladas por rnera falta de compreensão. A trama alienígena da sociedade se reafirma até mesmo diante do terror. Entretanto, deixemos de lado a questão da tirania. Nos níveis ocupados pela maioria dos homens, inclusive o autor e (supomos) quase todos os leitores destas linhas, a localização na sociedade constitui uma definição de regras que têm de ser obedecidas.
Como vimos, o consenso geral da sociedade entende isto. O sociólogo não contradiz esse entendimento. Ele o aguça, analisa suas raízes, às vezes o modifica ou o amplia. Veremos mais tarde que a perspectiva sociológica finalmente ultrapassa o consenso geral do "sistema" e de nosso cativeiro nele. Entretanto, na maioria das si­tuações sociais específicas que o sociólogo se dispõe a analisar, ele encontrará poucos motivos para desmentir a idéia de que são "eles" quem mandam. Ao contrán". "eles" terão ainda mais ascendência sobre nossas vidas do que julgávamos antes da análise sociológica. Este aspecto da perspectiva sociológica pode ser melhor es­clarecido pelo exame de duas importantes áreas de in­vestigação — o controle social e a estratificação social. Controle social é um dos conceitos mais utilizados em sociologia. Refere-se aos vários meios usados por uma sociedade para "enquadrar" seus membros recalcitrantes. Nenhuma sociedade pode existir sem controle social. Até mesmo um pequeno grupo de pessoas que se encontrem apenas ocasionalmente terá de criar seus mecanismos de controle para que o grupo não se desfaça em muito pouco tempo. E' escusado dizer que os instrumentais de con­trole social variam muitíssimo de uma situação social para outra. A oposição numa organização comercial pode acarretar aquilo que os gerentes de pessoal chamam de "entrevista final" e que as organizações criminais chamam de último passeio de automóvel. Os métodos de controle variam de acordo com a finalidade e o caráter do grupo em questão. Em qualquer um dos casos, os mecanismos sociais funcionam de maneira a eliminar membros inde­sejáveis e (como foi enunciado de maneira clássica pelo Rei Christophe, o Haiti, quando mandou executar um décimo de seus trabalhadores) "para estimular os outros".
O meio supremo e, sem dúvida, o mais antigo, de con­trole social é a violência física. Na sociedade selvagem das crianças ainda é o mais importante. Entretanto, até mesmo nas polidas sociedades das modernas democra­cias, o argumento final é a violência. Nenhum Estado pode existir sem uma força policial ou seu equivalente em poderio armado. Essa violência final pode não ser usada com freqüência. Poderá haver inúmeras medidas antes de sua aplicação, à guisa de advertência e reprimenda. Mas se todas as advertências forem ignoradas, mesmo numa questão secundária como pagar uma multa de trânsito, o ato final será o aparecimento de dois poli­ciais à porta do cidadão, com algemas e um tintureiro. Até mesmo o guarda moderadamente cortês que entre­gou o talão de multa provavelmente usava uma arma — em caso de ser necessária... E até mesmo na Inglaterra, onde os guardas não portam armas, receberá uma se a situação exigir.

Nas democracias ocidentais, onde prevalece a ênfase ideológica na submissão voluntária às leis votadas por representantes populares, essa presença constante da vio­lência oficial é menos visível. O importante é que todos saibam que ela existe. A violência é o alicerce supremo de qualquer ordem política. O consenso geral da socie­dade percebe isto, o que talvez tenha alguma coisa a ver com a generalizada relutância popular em eliminar a pena capital do Direito Penal (embora provavelmente essa relutância se baseie em doses iguais de estupidez, superstição e do bestialismo congênito que os juristas par­tilham com a maior parte de seus concidadãos). Con­tudo, a afirmativa de que a ordem política repousa em última análise na violência também é válida em relação aos Estados que aboliram a pena capital. Sob certas circunstâncias, os membros da polícia estadual de Connecticut (onde uma cadeira elétrica adorna a peni­tenciária central) recebem permissão para usar suas armas, mas a mesma possibilidade está aberta a seus colegas de Rhode Island, onde as autoridades policiais e penitenciárias não desfrutam das vantagens da pena capital. Não é preciso ressaltar que nos países de ideo­logia menos democrática e humanitária os instrumentos de violência são exibidos — e empregados — com muito menos discrição.
Como o uso constante da violência seria impraticável, e além disso ineficiente, os órgãos oficiais de controle social confiam sobretudo na influência inibidora da dis­ponibilidade dos meios de violência. Por vários motivos, essa atitude geralmente se justifica em qualquer socie­dade que não esteja à beira da dissolução catastrófica (como, digamos, em situações de revolução, derrota mi­litar ou desastre natural). O motivo mais importante é o fato de que, mesmo nos Estados ditatoriais ou terro­ristas, um regime tende a ganhar aquiescência e até aprovação com a simples passagem do tempo. Não cabe aqui entrar na dinâmica sócio-psicológica deste fato. Nas sociedades democráticas há no mínimo a tendência de a maioria das pessoas aceitar os valores em nome dos quais os meios de violência são empregados (isto não significa que estes valores tenham de ser bons — a maioria dos brancos em algumas comunidades do Sul dos Estados Unidos pode ser, por exemplo, favorável ao uso da violência, por parte dos serviços policiais, a fim de manter a segregação — mas significa que a utilização dos meios de violência é aprovada pelo grosso da população). Em qualquer sociedade normal a vio­lência é utilizada com parcimônia e como último recurso, e a mera ameaça dessa violência final basta para o exer­cício cotidiano do controle social. Para os fins a que nos propomos, o fato mais importante a salientar é que quase todos os homens vivem em situações sociais nas quais, se todos os outros meios de coerção falharem, a violência pode ser oficial e legalmente usada contra eles.
Compreendido assim o papel da violência no controle social, torna-se claro que os, por assim dizer, penúltimos meios de coerção são quase sempre mais importantes para a maioria das pessoas. Embora haja uma certa mo­notonia quanto aos métodos de intimidação imaginados pêlos juristas e pêlos policiais, os instrumentais subviolentos de controle social apresentam grande variedade e, às vezes, muita imaginação. E' provável que, após os controles políticos e legais, se deva situar a pressão econômica. Poucos meios coercitivos são tão eficientes como aqueles que ameaçam o ganha-pão ou o lucro. Tanto os empregadores como os trabalhadores usam com eficácia essa ameaça como instrumento de controle em nossa sociedade. Entretanto, os meios econômicos de con­trole também são eficientes fora das instituições que com­preendem a "economia". As universidades e as igrejas utilizam as sanções econômicas, com a mesma eficiência, a fim de impedir seu pessoal de se entregar a uma con­duta discordante que as respectivas autoridades julgarem ultrapassar os limites do aceitável. Talvez não seja real­mente ilegal que um ministro religioso seduza sua orga­nista, mas a ameaça de ser impedido para sempre do exercício de sua profissão constituirá um controle muito mais eficiente sobre essa tentação que a possível ameaça de ter de ir para a cadeia. E' fora de dúvida não ser ilegal um ministro expor sua opinião sobre assuntos que a burocracia eclesiástica

preferiria ver sepultados no si­lêncio, mas a possibilidade de passar o resto da vida em paróquias rurais de baixa remuneração constitui realmen­te um argumento muito poderoso. E' claro que tais ar­gumentos são empregados mais abertamente em institui­ções econômicas propriamente ditas, mas a utilização de sanções econômicas nas igrejas e universidades não di­fere muito, em seus resultados, da que se verifica no mundo dos negócios.
Onde quer que seres humanos vivam ou trabalhem em grupos compactos, nos quais são conhecidos pessoalmen­te e aos quais estão ligados por sentimentos de lealda­de pessoal (aquilo que os sociólogos chamam de grupos primários), mecanismos de controle a um só tempo muito potentes e muito sutis são constantemente aplicados ao transgressor real ou potencial. Tratam-se dos mecanis­mos de persuasão, ridículo, difamação e opróbrio. Já se descobriu que em discussões grupais que se estendem durante um certo período, os indivíduos modificam suas opiniões originais, ajustando-as à norma grupai, que corresponde a uma espécie de média aritmética de todas as opiniões representadas no grupo. O ponto a que leva essa norma depende obviamente do grupo. Por exem­plo, se tivermos um grupo de vinte canibais discutindo o canibalismo com um não-canibal, as probabilidades maiores são de que ao fim este último saia convencido e que, com apenas algumas reservas para manter as aparências (referentes, digamos, ao consumo de parentes próximos), cederá completamente ao ponto de vista da maioria. Mas se tivermos uma discussão entre dez cani­bais que consideram a carne de pessoas de mais de sessenta anos como dura demais para um paladar apu­rado e dez outros canibais que estabelecem o limite aos cinqüenta anos, é provável que por fim o grupo con­corde em estabelecer o limite em cinqüenta e cinco anos, refugando como alimento os prisioneiros que ultrapassa­rem esta idade. Assim se processa a dinâmica grupai. O que jaz no fundo dessa pressão aparentemente inevi­tável no sentido de um consenso será provavelmente um profundo desejo humano de ser aceito, talvez por qual­quer grupo que estiver à mão. Esse desejo pode ser manipulado com toda eficiência, como bem sabem os terapistas de grupo, os demagogos e outros especialistas no campo da "engenharia do consenso".
O ridículo e a difamação são instrumentos potentes de controle social em grupos primários de todas as es­pécies. Muitas sociedades usam o ridículo como um dos principais controles sobre crianças — a criança obedece à norma não por receio de castigo, mas para não ser alvo de zombaria. Em nossa própria cultura, isto tem constituído importante medida disciplinar entre os negros do Sul. No entanto, a maioria das pessoas já sentiu o medo arrepiante de cair no ridículo em alguma situação social. A difamação, ou o mexerico, como é bem sabido, é de especial eficácia em pequenas comunidades, onde a maior parte das pessoas conduz suas vidas num alto grau de visibilidade e possibilidade de inspeção por parte de seus vizinhos. Em tais comunidades, o disse-me-disse é um dos principais canais de comunicação, essencial à manutenção da trama social. Tanto o ridículo como a difamação podem ser manipulados deliberadamente por qualquer pessoa inteligente que tenha acesso às suas linhas de transmissão.
Finalmente, uma das punições mais devastadoras à disposição de uma comunidade humana consiste em sub­meter um de seus membros ao opróbrio e ostracismo sistemáticos. De certa forma é irônico constatar que este é um mecanismo de controle favorito de grupos que se opõem em princípio ao uso da violência. Exemplo disso seria a "rejeição" entre os menonitas. Um indivíduo que quebra um dos principais tabus do grupo (por exemplo, envolver-se sexualmente com um estranho) é "rejeitado". Isto significa que, conquanto possa continuar a trabalhar e viver na comunidade, ninguém jamais lhe dirigirá a palavra. E' difícil imaginar um castigo mais cruel. En­tretanto, essas são as maravilhas do pacifismo.
Um dos aspectos do controle social que deve ser sa­lientado é o fato de se basear freqüentemente em afir­mações fraudulentas. Num capítulo posterior, retomare­mos a importância da fraude para uma compreensão sociológica da vida humana; aqui frisaremos

apenas que uma concepção de controle social é incompleta, e portanto tendenciosa, se esse elemento não for levado em consi­deração. Um garotinho pode exercer considerável controle sobre seu círculo de colegas se tiver um irmão maior que, se necessário, possa ser convocado para sovar algum adversário. Contudo, na falta de tal irmão, é pos­sível inventar um. Nesse caso só dependerá do talento de relações públicas do garotinho conseguir traduzir essa invenção em controle real. As mesmas possibilidades de fraude existem em todas as formas de controle social discutidas. E' por isso que a inteligência contribui para a sobrevivência quando se trata de competir com a bru­talidade, a maldade e recursos materiais. Voltaremos ainda a este ponto.
Podemos, então, considerar que estejamos no centro (isto é, no ponto de maior pressão) de um conjunto de círculos concêntricos, cada um dos quais representa um sistema de controle social. O círculo exterior bem poderá representar o sistema legal e político sob o qual somos obrigados a viver. È o sistema que, contra a vontade da pessoa, lhe cobrará impostos, a convocará para as for­ças armadas, a fará obedecer às suas inúmeras leis e a seus regulamentos, se necessário a meterá na prisão, e em último recurso a matará. Não é necessário que uma pes­soa seja um Republicano direitista, nos Estados Unidos, para se perturbar com a contínua expansão do poder desse sistema, que atinge todos os aspectos concebíveis da vida de uma pessoa. Seria um exercício salutar ano­tar, durante uma única semana, todas as ocasiões, in­clusive as fiscais, em que se sofreu as exigências do sistema político-legal. O exercício pode ser concluído com a soma das multas e/ou sentenças de prisão a que poderia levar a desobediência ao sistema. O consolo que poderia advir de tal exercício consistiria em perceber ou lembrar que os serviços policiais e judiciários são nor­malmente corruptos e de limitada eficiência.
Outro sistema de controle social que exerce pressão contra a figura solitária no centro dos círculos é o da moralidade, costumes e convenções. Só os aspectos mais urgentes (para as autoridades) desse sistema acarretam sanções legais. Isto não significa, entretanto, que se possa, sem risco, ser imoral, excêntrico ou anticonvencional. Nesse ponto, todos os outros instrumentos de controle social entram em ação. A imoralidade é punida com a perda do emprego, a excentricidade pela perda das pos­sibilidades de se conseguir outro, o anticonvencionalismo pela rejeição dos grupos que respeitam aquilo que con­sideram ser boas maneiras. O desemprego e a solidão talvez sejam castigos menores que ser levado arrastado pêlos policiais, mas talvez a pessoa punida não pense assim. O desafio extremo aos costumes de nossa socie­dade, que dispõe de um instrumental de controle bastante desenvolvido, pode levar ainda a outra conseqüência — a definição de uma pessoa como "adoidada".
A burocracia esclarecida (da qual fazem parte, por exemplo, as autoridades eclesiásticas de algumas deno­minações protestantes) já não atira seus empregados dis­cordantes no olho da rua, mas ao invés disso os subme­te a tratamento psiquiátrico. Dessa forma, o indivíduo que não satisfaz os critérios de normalidade estabeleci­dos pela administração, ou por seu bispo, é ameaçado com desemprego e com a perda de ligações sociais, mas além disso também é estigmatizado como uma pessoa que com toda justiça poderá ser afastada inteiramente da categoria dos homens responsáveis, a menos que dê mostras de remorso ("entendimento") e resignação ( reação e tratamento"). Assim, os inúmeros programas de "assistência", "orientação" c "terapia" levados a efei­to em muitos setores da vida institucional contemporânea, fortalecem enormemente o mecanismo de controle da so­ciedade como um todo, e principalmente daqueles seus argumentos onde as sanções do sistema político-legal não podem ser invocadas.
Contudo, além desses amplos sistemas coercitivos exer­cidos sobre todos os indivíduos, há ainda outros círculos de controle, menos gerais. A ocupação escolhida por um indivíduo (ou, como geralmente acontece, a ocupação a que ele foi levado) inevitavelmente o subordina a vários controles, muitas vezes bastante rígidos. Há os controles formais de juntas de licenciamento, organizações profis­sionais e sindicatos, além, é claro, dos requisitos formais estabelecidos por seus empregadores. Ao lado desses controles formais, há outros informais,

impostos por co­legas de profissão e companheiros de trabalho. Este ponto também não exige maiores explicações. O leitor poderá alinhar seus próprios exemplos — o médico que participa de um programa de assistência médica pago por antecipação, o agente funerário que anuncia funerais baratos, o engenheiro industrial que não leva em consi­deração a obsolescência planejada em seus cálculos, o ministro que afirma não estar interessado no tamanho de sua congregação (ou melhor, o que age assim — quase todos dizem isto), o burocrata do governo que regularmente gasta menos que a verba consignada, o operário da linha de montagem que excede as normas tidas como aceitáveis por seus colegas, etc. As sanções econômicas são, naturalmente, as mais comuns e eficien­tes nesses casos — o médico se vê impedido de traba­lhar em todos os hospitais, o agente funerário pode vir a ser excluído de sua associação profissional por "falta de ética", o engenheiro poderá ser obrigado a entrar para os Voluntários da Paz, como também o ministro e o burocrata (para trabalhar, digamos, na Nova Guiné, onde ainda não existe obsolescência planejada, onde os cristãos são raros e muito dispersos e onde a máquina administrativa ainda é bastante pequena para ser relati­vamente racional) e o operário da linha de montagem poderá vir a descobrir que todas as peças defeituosas da fábrica sempre acabam em sua banca. Entretanto, as sanções de exclusão social, desprezo e ridículo também podem ser quase intoleráveis. Todo papel ocupacional na sociedade, até mesmo em empregos muito humildes, traz consigo um código de conduta que não pode ser violado impunemente. Normalmente, a obediência a esse código é tão essencial para a carreira de uma pessoa quanto a competência técnica ou a educação.
O controle social do sistema ocupacional é da maior importância porque é o emprego que decide o que uma pessoa pode fazer na maior parte de sua vida — de quais associações ele poderá tornar-se membro, quem serão seus amigos e onde ele poderá morar. Contudo, além das pressões da ocupação de uma pessoa, seus outros envolvimentos sociais também acarretam sistemas de controles, muitos dos quais menos rígidos, outros ainda mais inflexíveis. Os códigos que regem a admissão e permanência em muitos clubes são tão rigorosos quantos os que decidem quem pode tornar-se chefe na IBM (às vezes, felizmente para o atormentado candidato, os re­quisitos são os mesmos). Em associações menos fecha­das, as normas podem ser mais indulgentes e talvez só raramente um membro seja excluído, mas a vida pode se tornar tão desagradável para o persistente não-conformista que sua participação se torne humanamente impossível. E' claro que os pontos cobertos por esses códigos tácitos variam amplamente. Podem incluir ma­neiras de vestir, linguagem, gosto estético, convicções políticas e religiosas, ou simplesmente maneiras à mesa. Em todos esses casos, porém, constituem círculos de controle que circunscrevem efetivamente o âmbito das possíveis ações do indivíduo na situação dada.
Por fim, o grupo humano no qual transcorre a chama­da vida privada da pessoa, ou seja, o círculo da família e dos amigos pessoais, também constitui um sistema de controle. Seria erro grave supor que este seja neces­sariamente o mais débil de todos, apenas por não possuir os meios formais de coerção de alguns dos outros sis­temas de controle. E' nesse círculo que se encontram normalmente os laços sociais mais importantes de um indivíduo. A desaprovação, a perda de prestígio, o ridículo ou o desprezo nesse grupo mais íntimo têm efeito psicológico muito mais sério que em outra parte. O fato de o chefe concluir que uma pessoa é imprestável pode ter conseqüências econômicas desastrosas, mas o efeito psicológico de tal opinião é incomparavelmente mais de­vastador para um homem se ele descobrir que sua mulher chegou à mesma conclusão. Além disso, as pressões desse sistema íntimo de controle podem ser exercidas nas oca­siões em que uma pessoa está menos preparada para elas. No trabalho, uma pessoa geralmente está em melho­res condições de se resguardar, de se precaver e fingir que está à vontade. O "familismo" americano contempo­râneo, um conjunto de valores que dá forte ênfase ao lar como lugar de refúgio das tensões do mundo e da rea­lização pessoal,

contribui bastante para esse sistema de controle. Um homem relativamente preparado psicologi­camente para oferecer combate em seu escritório esta­rá disposto a fazer qualquer coisa para preservar a pre­cária harmonia de sua vida familiar. Ademais, o controle social daquilo que os sociólogos alemães chamam de a "esfera do íntimo" é particularmente poderoso devido aos próprios fatores da biografia do indivíduo que en­traram em sua formação. Um homem escolhe uma mulher e um bom amigo em atos de autodefinição. Aquelas pessoas que ele conhece mais intimamente são aquelas com que ele tem de contar para sustentar os elementos mais importantes de sua auto-imagem. Portanto, arriscar a desintegração dos relacionamentos com essas pessoas equivale a arriscar perder-se a si mesmo de maneira inapelável. Não é de admirar, portanto, que muitos dés­potas no escritório obedeçam prontamente às suas mu­lheres e tremam diante de um olhar de reprovação dos amigos.
Se voltarmos à imagem de um indivíduo localizado no centro de um conjunto de círculos concêntricos, cada um dos quais representa um sistema de controle social, po­demos compreender um pouco melhor que situar-se na sociedade significa situar-se em relação a muitas forças repressoras e coercitivas. O indivíduo que, pensando consecutivamente em todas as pessoas que talvez tenha de agradar, desde o Inspetor do Serviço de Rendas Internas até sua sogra, julgar que toda a sociedade esteja montada em sua cabeça não deve rejeitar essa idéia como uma perturbação neurótica momentânea. E' provável que o so­ciólogo intensifique essa opinião, por mais que outros orientadores digam tratar-se de uma ilusão.
Outra área importante de análise sociológica que talvez contribua para elucidar o pleno significado da localização na sociedade é a da estratificação social. O conceito de estratificação refere-se ao fato de que toda sociedade compõe-se de níveis inter-relacionados em termos de as­cendência e subordinação, seja em poder, privilégio ou prestígio. Em outras palavras, estratificação significa que toda sociedade possui um sistema de hierarquia. Alguns estratos, ou camadas sociais, são superiores, outros são inferiores. A soma desses estratos constitui o sistema de estratificação de uma determinada sociedade.
A teoria da estratificação é um dos setores mais com­plexos do pensamento sociológico, e estaria inteiramente fora dos objetivos deste livro apresentar qualquer espé­cie de introdução ao assunto. Bastará dizer que as so­ciedades diferem amplamente no tocante aos critérios se­gundo os quais os indivíduos são levados aos diferentes níveis, e que diversos sistemas de estratificação, utilizan­do critérios distributivos inteiramente diferentes, podem coexistir na mesma sociedade. E' claro que os fatores que determinam a posição de um indivíduo no sistema de estratificação da tradicional sociedade de castas na índia são muito diferentes dos fatores que determinam sua po­sição numa moderna sociedade ocidental. E as três prin­cipais recompensas da posição social — poder, privilé­gio e prestígio — com freqüência não se sobrepõem, antes existindo lado a lado em sistemas de estratificação dis­tintos. Em nossa sociedade, a riqueza muitas vezes leva a poder político, mas não necessariamente. Além disso, existem indivíduos poderosos e dotados de pouca riqueza. E o prestígio pode estar ligado a atividades sem nenhuma relação com posição econômica ou política. Essas observações indicam que devemos agir com cautela ao investigar a maneira como a localização na sociedade envolve o sistema de estratificação, com sua enorme in­fluência sobre toda a vida de uma pessoa.
O tipo de estratificação mais importante na sociedade ocidental contemporânea é o sistema de classes. O con­ceito de classe, como a maioria dos conceitos na teoria da estratificação, tem sido definido de várias formas. Para nossos objetivos, será suficiente entender classe como um tipo de estratificação no qual a posição geral de uma pessoa na sociedade é determinada basicamente por critérios econômicos. Em tal sociedade, a classe a que se chega é tipicamente mais importante do que a classe em que se nasceu (embora a maioria das

pessoas admita que esta tenha influência profunda sobre aquela). Além disso, uma sociedade de classes é uma sociedade de alta mobilidade social. Isto significa que as posições sociais não são fixas, que muitas pessoas mudam suas posições para melhor ou para pior no decorrer de sua vida, e que, conseqüentemente, nenhuma posição parece inteira­mente segura. Por isso, os símbolos da posição de uma pessoa são de grande importância. Isto é, pelo uso de vários símbolos (como objetos materiais, estilos de com­portamento, gosto e linguagem, tipos de associação e até opiniões apropriadas) uma pessoa está sempre a mostrar ao mundo o ponto a que chegou. E' a isto que os sociólogos chamam de símbolos de status, que têm despertado grande atenção nos estudos de estratificação.
Max Weber definiu classe em termos das expectativas razoáveis que um indivíduo pode ter. Em outras pala­vras, a classe de uma pessoa determina certas possibi­lidades, ou oportunidades, quanto ao destino que a pes­soa pode esperar ter na sociedade. Todo mundo admite isto em termos estritamente econômicos. Um indivíduo de classe média superior de, digamos, vinte e cinco anos de idade tem muito mais possibilidades de possuir dai a dez anos uma casa elegante, dois carros e uma casa de campo do que outro indivíduo da mesma idade de classe média inferior. Isto não significa que este último não tenha nenhuma possibilidade de obter essas coisas, mas simplesmente que se encontra em desvantagem esta­tística. Isto não é de modo algum surpreendente, por­quanto, de saída, classe foi definida em termos econômicos é uma vez que o processo econômico normal ga­rante que dinheiro atrai dinheiro. Contudo, a classe de­termina as possibilidades na vida em muitos outros sen­tidos além do puramente econômico. A posição de classe de uma pessoa determina o nível de educação que seus filhos provavelmente terão. Determina os padrões de assis­tência médica desfrutados por ela e por sua família, e, por conseguinte, as expectativas de vida no sentido li­teral da palavra. As classes superiores de nossa socie­dade alimentam-se melhor, moram melhor, são mais bem educadas e vivem mais do que seus concidadãos menos afortunados. Poder-se-á dizer que essas observações são óbvias, mas elas adquirem maior impacto quando se cons­tata que há uma correlação estatística entre a quantidade de dinheiro que uma pessoa ganha por ano e o número de anos que pode esperar poder ganhá-lo. Mas as con­sequências da localização dentro do sistema de classes vão mais além.
As diferentes classes de nossa sociedade não só vivem de maneira diferente quantitativamente, como também vivem em estilos diferentes qualitativamente. Um sociólo­go competente, diante de dois índices básicos de classe, como renda e ocupação, é capaz de fazer uma longa lista de prognósticos sobre o indivíduo em questão, mesmo que nenhuma outra informação lhe seja dada. Como todas as outras previsões sociológicas, esses pro­gnósticos terão caráter estatístico. Ou seja, serão afir­mações de probabilidade e terão uma margem de erro. No entanto, poderão ser bastante precisas. Conhecendo essas duas informações a respeito de determinado indi­víduo, o sociólogo será capaz de oferecer palpites inteligentes a respeito do bairro da cidade onde esse indivíduo mora, bem como sobre o tamanho e o estilo de sua casa. Poderá também fazer uma descrição geral da decoração interior e conjecturar sobre os tipos de quadros na parede e sobre os livros e revistas nas estantes. Poderá ainda calcular o tipo de música que o indivíduo gosta de ouvir, e até mesmo se ele costuma ouvi-la em concertos na vitrola ou no rádio. Mas o sociólogo poderá ir adiante. Pode predizer os clubes e associações de que o indiví­duo em questão é sócio e qual a igreja que ele fre­quenta. Pode estimar seu vocabulário, sua maneira de falar, etc. Pode avaliar a filiação política do indivíduo e sua opinião sobre várias questões públicas. Pode prever seu número de filhos e ainda se ele tem relações sexuais com a mulher com as luzes acessas ou apagadas. Po­derá fazer algumas afirmativas sobre a probabilidade do cidadão ser acometido por várias doenças, físicas e mentais. Como já vimos, ele será capaz de situar o ho­mem num quadro atuarial de expectativas de vida. Final­mente, se o sociólogo decidisse verificar todos esses pal­pites e solicitasse uma entrevista ao indivíduo em questão, ele será capaz de estimar as possibilidades de que a entrevista seja negada.
Muitos dos elementos a que acabamos de nos referir são criados por controles externos, em qualquer classe dada. Assim, o gerente de uma empresa que tiver o en­dereço "errado" e a mulher "errada" será submetido a considerável pressão para mudar ambos. O indivíduo de classe trabalhadora que desejar freqüentar uma igreja de classe média superior será levado a entender, em termos inequívocos, que "se sentiria mais satisfeito em outro lugar". Ou a criança de classe média inferior com in­clinações para a música de câmera se defrontará com fortes pressões para corrigir essa aberração e adquirir interesses musicais mais consonantes com os de sua família e de seus amigos. Contudo, em muitos desses casos a aplicação de controles externos será de todo desnecessária, uma vez que a probabilidade de ocorrência de desvios é realmente mínima. A maioria dos indivíduos aos quais está aberta uma carreira de executivo casa-se com o tipo "certo" de mulher, quase que por instinto, e as crianças de classe média inferior têm seus gostos musicais formados bem cedo, e de maneira tal a se tornarem relativamente imunes às seduções da música de câmera. Cada ambiente de classe forma a personalidade de seus membros através de inumeráveis influências que começam ao nascimento e que se estendem até à forma­tura do curso secundário ou ao reformatório, conforme o caso. Só quando essas influências formativas de algu­ma forma não conseguem alcançar o objetivo é que se faz necessária a ação dos mecanismos de controle so­cial. Portanto, ao tentar compreender a importância de classe, estamos não só examinando outro aspecto de con­trole social, como estamos também começando a vis­lumbrar a maneira como a sociedade penetra nos recônditos de nossa consciência, uma coisa sobre a qual nos alongaremos no próximo capítulo.
Ressalte-se neste ponto que essas observações sobre classe não pretendem de modo algum constituir uma acusação colérica contra nossa sociedade. Existem decer­to alguns aspectos de diferenças de classe que poderiam ser modificados por certas espécies de engenharia so­cial, como a discriminação de classe na educação e as desigualdades de classe na assistência médica. Entretan­to, nenhum volume de engenharia social modificará o fato básico de que os diferentes ambientes sociais exer­cem diferentes pressões sobre seus membros, ou que al­gumas dessas pressões contribuem mais do que outras para o sucesso, segundo a maneira como o sucesso for definido numa dada sociedade. Há bons motivos para se crer que algumas das características fundamentais de um sistema de classes, às quais acabamos de nos referir, são encontradas em todas as sociedades industriais ou em industrialização, inclusive nas governadas por regi­mes socialistas, que negam em sua ideologia oficial a existência de classes. Entretanto, se a localização num determinado estrato social tem essas amplas conseqüências numa sociedade relativamente "aberta" como a nossa, é fácil imaginar quais serão as conseqüências em siste­mas mais "fechados". Neste ponto nos reportamos mais vez à instrutiva análise feita por Daniel Lerner as sociedades tradicionais do Oriente Médio, nas quais a localização social fixava a identidade e as expec­tativas de uma pessoa (até mesmo na imaginação) num grau que a maioria dos ocidentais acha difícil até de compreender. Entretanto, antes da revolução industrial as sociedades européias não eram radicalmente diferentes na maioria de suas camadas, do modelo tradicional de Lerner. Em tais sociedades, pode-se saber o que é um homem apenas conhecendo-se sua posição social, da mesma forma que se pode olhar para a testa de um hindu e ver nela a marca de sua casta.
Contudo até em nossa própria sociedade existem outros sistemas de estratificação, por assim dizer sobrepostos ao sistema de classe, muito mais rígidos que este, e que, por conseguinte, determinam de maneira muito mais severa toda a vida do indivíduo. Um exemplo notável disto na sociedade americana é o sistema racial, que a maioria dos sociólogos considera uma variedade de casta. Em tal sistema, a posição social básica de um indivíduo (isto é, a fixação de sua casta) é determinada ao nas­cimento. Pelo menos em teoria ele não tem absoluta­mente nenhuma possibilidade de modificar essa posição no decorrer de sua vida. Por mais rico que um homem se torne, sempre será negro. Ou por mais baixo que um homem caia, em termos dos costumes da sociedade, sem­pre será branco. Um indivíduo nasce em sua casta, tem de viver toda a vida dentro dela e dentro dos limites de conduta prescritos. E' claro que deve casar-se e procriar dentro dessa casta. Na realidade, pelo menos em nosso sistema racial, existem algumas possibilidades de trapaça - isto é, negros de pele clara "passarem" por brancos. Entretanto, essas possibilidades em pouco alteram a eficácia total do sistema.
Os fatos deprimentes do sistema racial americano são por demais conhecidos para exigirem maior elaboração aqui. E' claro que a localização social de um indivíduo como negro (mais no Sul do que no Norte, naturalmente, mas com menos diferenças entre as duas regiões do que brancos farisaicos do Norte habitualmente proclamam) implica numa drástica redução de possibilidades existenciais determinadas pela classe. Na verdade, as possibi­lidades de mobilidade social de um indivíduo são nitida­mente determinadas pela localização racial, uma vez que algumas das desvantagens mais prementes desta última são de caráter econômico. Assim, a conduta, as idéias e a identidade psicológica de um homem são moldadas pela raça de maneira muito mais decisiva do que peia classe. A força repressora dessa localização pode ser vista em sua forma mais pura (se é que tal adjetivo pode ser aplicado, mesmo num sentido quase químico, a fenômeno tão revoltante) na etiqueta racial da sociedade tradicional do Sul dos Estados Unidos, na qual todo e qualquer caso de interação entre membros das duas castas era regulado num ritual estilizado projetado com todo cuidado para honrar uma das partes e humilhar a outra. Um negro se arriscava a punição física, e um branco a extremo opróbrio, pela mais leve violação do ritual. A raça era muito mais importante do que o lugar onde uma pessoa podia morar e a quem podia ligar-se. Determinava a inflexão vocal, os gestos, as piadas de uma pessoa, e até se infiltrava em seus sonhos de sal­vação. Em tal sistema, os critérios de estratificação tornavam-se obsessões metafísicas — como no caso da senhora sulista que expressava a convicção de que sua cozinheira iria sem a menor dúvida para o céu das pessoas de cor.
Um conceito muito usado em sociologia é o de defi­nição da situação. Assim chamado pelo sociólogo ame­ricano W. I. Thomas, significa que uma situação social é o que seus participantes crêem que ela seja. Em outras palavras, para as finalidades do sociólogo, a realidade é uma questão de definição. E' por isso que o soció­logo deve analisar atentamente muitas facetas da conduta Humana que em si mesmas são absurdas ou ilusivas. No exemplo do sistema racial acima mencionado, um biólogo ou antropólogo poderá olhar as convicções raciais dos brancos sulistas e declarar que tais convicções são intei­ramente falsas. Poderá então negá-las como apenas mais uma mitologia produzida pela ignorância e má vontade humanas, arrumar suas coisas e ir embora. A tarefa do sociólogo, porém, só então começa. De nada lhe adianta rejeitar a ideologia racial sulista como uma imbecilidade cientifica. Muitas situações sociais são na verdade con­troladas pelas definições de imbecis. Na verdade, a im­becilidade que define a situação faz parte do material de análise sociológica. Assim, a compreensão operacional que o sociólogo tem de "realidade" é um tanto peculiar, questão à qual retornaremos. No momento, o importan­te é observar que os controles inexoráveis pêlos quais a localização social determina nossa vida não são elimi­nados com o desmascaramento das idéias que sustentam esses controles.
E a história não acaba aí. Nossas vidas são dominadas não só pelas inanidades de nossos contemporâneos, como também pelas de homens que já morreram há várias ge­rações. Além disso, cada inanidade ganha credibilidade e reverência com cada década passada desde sua pro­mulgação. Como Alfred Schuetz observou, isto significa que cada situação social em que nos encontramos não só é definida por nossos contemporâneos, corno ainda pré-definida por nossos predecessores. Como não se pode redargüir a nossos ancestrais, comumente é mais difícil nos livrarmos de suas fatídicas -heranças do que das to­lices criadas em nossa própria geração. Este fato é ex­presso no aforismo segundo o qual os mortos são mais poderosos que os vivos.
E' importante acentuar este ponto porque ele nos de­monstra que até mesmo nas áreas em que a sociedade aparentemente nos permite alguma opção a mão podero­sa do passado estreita ainda mais essa opção. Como exemplo, voltemos a um incidente já evocado, a cena de um casal de namorados ao luar. Imaginemos ainda que essa ocasião seja a decisiva, na qual uma proposta de casamento é feita e aceita. Ora, sabemos que a so­ciedade contemporânea impõe consideráveis limitações a essa escolha, facilitando-a bastante no caso dos casais que se ajustam nas mesmas categorias sócio-econômicas e criando graves obstáculos nos casos em que não existe essa concordância. No entanto, também é claro que até mesmo nos pontos em que "eles" (que ainda estão vivos) não fizeram nenhuma tentativa consciente para limitar a escolha 'dos participantes nesse drama específico, "eles" (que já morreram) escreveram o script de quase toda a cena A idéia de que atração sexual pode ser traduzida em emoção romântica foi maquinada por menestréis de vozes aveludadas que excitavam a imaginação de damas aristocráticas mais ou menos por volta do século XII. A idéia de que um homem deveria fixar seu impulso sexual de modo permanente e exclusivo numa única ' mulher, com quem ele deve dividir o leito, o banheiro e o tédio de milhares de cafés-da-manhã remelosos foi produzida por teólogos misantrópicos um pouco antes. E a premissa de que a iniciativa desse acordo maravi­lhoso deva partir do macho, com a fêmea sucumbindo graciosamente à arremetida impetuosa de suas carícias, remonta às eras pré-históricas em que pela primeira vez guerreiros selvagens investiram contra alguma pacífica aldeia matriarcal, arrastando suas filhas.
Da mesma forma como todos esses vetustos perso­nagens prepararam a estrutura básica dentro da qual se desenrolarão as paixões de nosso casal, também cada um dos estágios de suas relações recíprocas foi pré-definido, pré-fabricado — ou, se o leitor assim preferir, "fixado". Não se trata apenas do fato de se esperar que os dois se apaixonem e contratem um casamento monógamo no qual a moça renunciará ao sobrenome de solteira e o rapaz à solvência financeira, que esse amor deva ser fabricado a todo custo para que o casamento não pareça insincero a todos os envolvidos, ou que a Igreja e o Estado vigiem a ménage com toda atenção uma vez estabelecida — embora tudo isto constitua normas fundamentais estipuladas séculos antes de os protago­nistas nascerem. Além disso, cada um dos estágios do namoro e do noivado é também estabelecido por ritual social e embora sempre haja margem para improvisações, uma variação excessiva nos padrões certamente porá em perigo toda a operação. Assim, nosso casal começa com idas ao cinema e passa a encontros na igreja e a reuniões de família; começa de passeios de mãos dadas e passa a explorações hesitantes e àquilo que inicialmente desejava guardar para depois; começa com planos para uma saída à noite e passa a planos para a nova re­sidência — sendo que a cena ao luar ocupa seu lugar adequado na seqüência cerimonial. Nenhum dos dois in­ventou o jogo ou qualquer uma de suas partes. Apenas decidiram jogá-lo um com o outro, e não com terceiros. Tampouco têm muita margem de escolha quanto ao que acontecerá depois da troca ritual de proposta e resposta. Familiares, amigos, clérigos, vendedores de jóias, corretores de seguros, floristas e decoradores garantem que o restante do jogo continue a ser praticado dentro das regras estabelecidas. Tampouco esses guardiães da tra­dição têm de exercer muita pressão sobre os protago­nistas, uma vez que as expectativas de seu mundo social há muitos anos foram integradas em suas projeções do futuro — eles desejam exatamente aquilo que a socie­dade espera deles.

Se as coisas se passam assim nas esferas mais íntimas de nossa existência, é fácil constatar que não mudam muito em quase todas as situações sociais encontradas no decorrer de uma vida. Quase sempre, o jogo já foi "arrumado" muito antes de entrarmos em cena. Tudo quanto nos resta, geralmente, é jogá-lo com mais ou com menos entusiasmo. O professor que entra na sala para dar aula, o juiz que pronuncia a sentença, o pregador que enfastia sua congregação, o general que dá ordem de ataque à sua tropa — todas essas pessoas estão empenhadas em ações já pré-definidas dentro de limites muito estreitos e protegidos por imponentes sistemas de controles e sanções.
Tendo em mente essas considerações, podemos agora chegar a uma compreensão mais exata do funcionamen­to das estruturas sociais. Um útil conceito sociológico em que basear essa compreensão é o de "instituição. Geralmente se define instituição como um complexo es­pecífico de ações sociais. Podemos dizer assim que lei, classe, casamento ou religião organizada sejam institui­ções Essa definição ainda não nos informa a maneira mino a instituição se relaciona com as ações dos indi­víduos envolvidos. Arnold Gehlen, sociólogo alemão con­temporâneo, ofereceu uma resposta sugestiva a essa questão. Gehlen concebe a instituição como um órgão regulador, que canaliza as ações humanas quase da mes­ma forma como os instintos canalizam o comportamen­to animal. Em outras palavras, as instituições propor­cionam métodos pêlos quais a conduta humana é pa­dronizada, obrigada a seguir por caminhos considera­dos desejáveis pela sociedade. E o truque é executado ao se fazer com que esses caminhos pareçam ao indi­víduo como os únicos possíveis.
Citemos um exemplo. Como não é preciso ensinar os gatos a caçar ratos, existe aparentemente alguma coisa no equipamento congênito de um gato (um instinto, se o leitor gostar do termo) que o faz agir assim. Presu­mivelmente, quando um gato avista um rato, há alguma coisa que lhe diz: "Coma! Coma! Coma!" Não se pode dizer que o gato resolve atender este apelo interior. Ele simplesmente segue a lei de seu ser mais íntimo e arre­mete contra o pobre camundongo (o qual, suponho, es­cuta uma voz interior que lhe diz: "Corra! Corra! Corra!"). O gato não tem outra alternativa. Mas agora voltemos ao casal cujo namoro analisamos anteriormen­te. Quando nosso rapaz viu pela primeira vez a moça com quem representaria a cena ao luar (ou, se não foi na primeira vez, algum tempo depois), também ouviu uma voz interior que lhe dava uma ordem bem clara. E seu comportamento subseqüente demonstra que ele também não pôde resistir à voz de comando. Não, essa ordem imperativa não é essa em que o leitor provavel­mente está pensando — esse imperativo nosso rapaz compartilha congenitamente com os gatos, chimpanzés e cro­codilos e não nos interessa no momento. O imperativo que nos interessa é aquele que lhe diz: "Case-se! Case-se! Casa-se!” Ao contrário do gato, nosso rapaz não nasceu com esse imperativo. Ele lhe foi instilado pela sociedade, reforçado pelas incontáveis pressões de histórias de família, educação moral, religião, dos meios de co­municação e da publicidade. Em outras palavras o casamento não é um instinto, e sim uma instituição No entanto, a maneira como conduz o comportamento para canais pré-determinados é muito semelhante à atuação dos instintos em seus setores.
A veracidade disto se torna óbvia quando tentamos imaginar o que nosso jovem faria na ausência do im­perativo institucional. Poderia, naturalmente, fazer um número quase infinito de coisas. Poderia manter relações sexuais com a moça, deixá-la e nunca mais voltar a vê-la. Ou poderia esperar que seu primeiro filho nascesse e depois pedir ao tio materno da moça que o criasse. Ou poderia reunir três amigos e propor tomar a moça em comum como esposa. Ou poderia incorporá-la a seu harém, juntamente com as outras vinte e três mulheres que já vivem lá. Em outras palavras, dados seu impulso sexual e seu interesse naquela moça específica, o rapaz estaria num impasse bastante sério. Mesmo supondo que ele tivesse estudado antropologia e soubesse que todas as opções acima mencionadas constituem

as atitudes normais em certas culturas humanas, ainda assim ele es­taria em apuros para decidir qual seria o caminho mais conveniente nesse caso. Já percebemos então o que o imperativo institucional faz para ele — protege-o desse impasse. Exclui todas as outras opções em favor daquela que a sociedade pré-definiu para ele. Até mesmo afasta essas outras opções de sua consciência. Apresenta-lhe uma fórmula — desejar é amar, é casar. Tudo quanto lhe resta fazer agora é retrilhar o caminho preparado para ele nesse programa. Isto poderá apresentar um número bastante grande de dificuldades, mas são difi­culdades de natureza muito diversa das enfrentadas por algum proto-macho que encontrasse uma proto-femea numa clareira da floresta primal e tivesse de elaborar um mudus vivertdi viável com ela. Em outras palavras, a instituição do casamento serve para canalizar a conduta de nosso rapaz, fazê-lo seguir determinado tipo de comportamento. A estrutura institucional da sociedade proporciona a tipologia para nossas ações. Só muito, muito nuamente é que temos necessidade de imaginar novos tipos segundo os quais nos conduzir. No mais das vezes, podemos no máximo escolher entre o tipo A e o tipo B tendo ambos sido pré-definidos a priori. Poderíamos decidir entre ser artista ou homem de negócios. Em ambos os casos, porém, encontraríamos pré-definições bastante precisas do que devemos fazer. E nenhum dos dois estilos de vida terá sido inventado por nós.
Outro aspecto do conceito de Gehlen da instituição a salientar, porque ele será importante mais adiante, é o da aparente inevitabilidade de seus imperativos. O rapaz médio de nossa sociedade não só rejeita as opções de poliandria ou poliginia, como, pelo menos para si, julga-as literalmente inimagináveis. Acredita que o rumo de ação pré-definido institucionalmente seja o único que ele poderia jamais tomar, o único de que é ontologicamente capaz. E' de se presumir que, caso refletisse sobre a perseguição que move ao camundongo, o gato chegasse à mesma conclusão. A diferença está em que o gato chegaria à conclusão correia, ao passo que o rapaz está enganado. Tanto quanto saibamos, um gato que se recusasse a perseguir camundongos constituiria uma monstruosidade biológica, talvez o resultado de uma mu­tação maligna, certamente um traidor da própria essência da felinidade. Entretanto, sabemos perfeitamente que ter muitas mulheres ou ser um entre muitos maridos não representa uma traição da condição humana, em qualquer sentido biológico, ou mesmo da virilidade. E como tais opções são possíveis aos árabes e tibetanos, respectiva­mente, devem também ser biologicamente possíveis a nosso rapaz. Na verdade, sabemos que se ele tivesse sido tirado do berço e levado para essas plagas exóticas, não teria crescido corno o típico rapaz americano de sangue quente e algo mais que ligeiramente sentimental de nossa cena de luar, e se teria transformado num lúbrico polígamo na Arábia ou num tranqüilo marido entre maridos no Tibet. Ou seja, ele está enganando a si mesmo (ou, mais exatamente, está sendo enganado pela sociedade) quando encara seu rumo de ação nessa questão como inevitável Isto significa que toda estrutura institucional tem de de­pender da fraude e que toda existência em sociedade traz consigo um elemento de má fé. Este vislumbre da realidade pode parecer profundamente deprimente a prin­cípio, mas, como veremos, ele na verdade nos oferece a primeira nesga de uma visão da sociedade um pouco menos determinista que aquela que até agora obtivemos.
No momento, contudo, nossas considerações sobre a perspectiva sociológica nos conduziram a um ponto em que a sociedade mais parece uma gigantesca prisão que qualquer outra coisa. Passamos do contentamento infantil de se possuir um endereço à percepção adulta de que a maior parte da correspondência é desagradável. E a compreensão sociológica só nos ajudou a identificar mais de perto todos os personagens, vivos ou mortos, que gozam do privilégio de nos oprimir.
O pensamento sociológico que mais se aproxima dessa concepção da sociedade é o associado a Émile Durkheim e à sua escola. Durkheim ressaltava que a sociedade é um fenômeno sui generis, isto é, ela representa uma realidade compacta que não pode ser reduzida a outros termos ou para eles traduzida: Durkheim afirmou ainda que os fatos sociais são "coisas", possuidoras de uma existência objetiva externa a nós, tanto quanto os fenômenos da natureza. Durkheim agiu assim sobretudo para proteger a sociologia de ser tragada pêlos psicólogos de espírito imperialista, mas sua concepção é im­portante, ainda que excluamos essa preocupação meto­dológica. Uma "coisa" é algo como uma pedra, por exem­plo, com que se topa, algo que não deixa de existir mediante um simples desejo. Uma "coisa" é aquilo contra a qual se investe em vão, aquilo que existe apesar dos desejos e das esperanças de uma pessoa, aquilo que por fim pode cair sobre a cabeça de uma pessoa e mata-la. E' nesse sentido que a sociedade constitui uma coleçao de "coisas". E' possível que a instituição social "e melhor ilustre essa qualidade da sociedade seja a lei.
A seguirmos a concepção durkheimiana, portanto, a so­ciedade se manifesta como um fato objetivo. Ela existe, é algo que não pode ser negado e que se tem de levar em conta. A sociedade é externa a nós. Ela nos cerca, circunda nossa vida por todos os lados. Estamos na sociedade, localizados em setores específicos do sistema social. Essa localização pré-determina e pré-define quase tudo quanto fazemos, desde a linguagem até a etiqueta, desde nossas convicções religiosas até a probabilidade de que venhamos a cometer suicídio. Nossos desejos não são levados em consideração nessa questão de loca­lização social, e nossa resistência intelectual àquilo que a sociedade aprova ou proíbe adianta muito pouco, na melhor das hipóteses. A sociedade, como fato objetivo e externo, manifesta-se sobretudo na forma de coerção. Suas instituições moldam nossas ações e até mesmo nossas expectativas. Recompensam-nos na medida em que nos ativermos a nossos papéis. Se saímos fora desses papéis, a sociedade dispõe de um número quase infini­to de meios de controle e coerção. As sanções da socie­dade são capazes, a todo momento da existência, de nos isolar entre os outros homens, expor-nos ao ridículo, privar-nos de nosso sustento e de nossa liberdade e, em último recurso, privar-nos da própria vida. A lei e a mo­ralidade da sociedade podem apresentar complexas jus­tificativas para cada uma dessas sanções, e a maioria de nossos concidadãos aprovará que sejam usadas contra nós como castigo por nosso desvio. Finalmente, estamos localizados na sociedade não só no espaço, como tam­bém no tempo. Nossa sociedade constitui uma entidade histórica que se estende temporariamente além de qualquer biografia individual. A sociedade nos precedeu e sobreviverá a nós. Mossas vidas não são mais que episódios em sua marcha majestosa pelo tempo. Em suma, a sociedade constitui as paredes de nosso encarceramento na história.

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REFLITA SOBRE OS ENDEREÇAMENTOS ATRIBUÍDOS AO INDIVÍDUO NO CAMPO ESCOLAR. A QUE TIPOS DE LUGARIZAÇÕES ELE SE SUBMETE POR MEIO DA EDUCAÇÃO?